quinta-feira, julho 30, 2009

Zagueiros

(Mas para ser um bom zagueiro Não pode ser muito sentimental Tem que ser sutil e elegante Ter sangue frio Acreditar em si E ser leal - "Zagueiro" Jorge Ben)

Zagueiro é assim: pura defesa. Segue carregando o time nas costas, jogando na espreita, sempre pensando na melhor forma de driblar o adversário. Joga com a fidelidade de um cão de guarda, fazendo nos bastidores a sua rotina.
Zagueiro é aquele que toca a bola, que constrói a estratégia num olhar ligeiro sobre o campo e depois some, antes que os holofotes se virem para o gol. Zagueiro é aquele que muitas vezes entrega os louros, para que o gol seja marcado. Zagueiro é aquele a quem se culpa quando o time perdeu.
Zagueiro é aquele que ama a bola no pé e não o grito da torcida. Zagueiro é rotina e futebol cru.
Mas há momentos, simples momentos em que o ataque falha. A sede do atacante pelo gol é tanta, que ele mesmo se atropela e cai. Há momentos, geralmente quando o ataque se torna mais relevante do que o time, em que o caminho do sucesso é também o caminho do fracasso.
E nesse momento em que o atacante cai, penalizado pelo juiz da ganância. Nesse momento em que o técnico levanta do banco em desespero. Nesse momento em que a torcida se aquieta. Nesse momento em que o time adversário sorri. É exatamente nesse momento, nesse mágico momento, em que o zagueiro tem duas opções: pode ser fiel a defesa ou arriscar e partir para o gol.
Sua traição pode desfalcar o time. Sua traição pode lhe custar sua posição. Sua traição pode significar o seu fracasso.
Mas com a bola no pé, o atacante caído e o placar zerado, o Zagueiro tem tudo e ao mesmo tempo nada a perder. Por isso ele corre. Por isso ele dribla. Por isso, ele segue para o gol como quem tem sua chance de ouro. Por isso ele conduz a bola com paixão.
E porque a vida é também irônica, nesses momentos de fúria e apreensão, o goleiro adversário se desconcerta e falha. E finalmente a bola se choca com a rede. É gol. De placa.
O Zagueiro então levanta a camisa e abre os braços para a torcida. O atacante, ofendido, se zanga. O técnico o repreende com um sorriso.
E enquanto a torcida vibra, o zagueiro chora a sina de quem depende da sorte para mostrar aquilo que pode ser. E brilha. Mais do que qualquer holofote.
O gol da zaga é sempre de fúria. É sempre de risco. E por isso eternamente dolorido.
Às vezes acho que nasci assim, com a mesma sina de muitas outras pessoas: a sina de ser zagueiro.
E quanto mais a vida me massacrar, pela irresponsabilidade de lutar pelo gol, quando devo ser defesa, mas as minhas pernas se fortalecem.
E sem ter medo, eu vou sempre sair da zaga e correr para o gol.

terça-feira, julho 21, 2009

Andar por entre as pedras


Paraty é uma cidade incrível. Proporciona experiências maravilhosas na medida em que desafia o nosso senso plano de entender o mundo.
As ruas do centro histórico são todas formadas por enormes pedaços de pedra, que tornam qualquer passeio uma aventura sobre a irregularidade. Como as pedras são naturalmente escorregadias, até o mais distraído dos instintos é convocado ao passeio, de modo que é impossivel caminhar sem que se olhe para o chão. Nos dias de chuva, a atenção é redobrada a ponto de não conseguir se pensar em mais nada.
Um dia fiquei horas caminhando pelo centro histórico e percebi que meu cérebro se ocupava tanto em coordenar os passos, que não era possível pensar em mais nada.
Acho que fiquei absolutamente viciada nessa sensação. De não pensar em nada. E todos os dias, eu caminhava por pelo menos uma hora me esquecendo do trabalho, das contas que venceriam, dos sons do despertador, dos amores que não vivi.
Diante das irregularidades dos passos, eu me esquecia da irregularidade da vida. E tudo parecia extremamente leve.

segunda-feira, julho 20, 2009

Mathias

Odeio hippies. Por uma razão muito óbvia: eles consomem a nossa carência de liberdade. E isso me irrita. Profundamente.
É um clichê de férias: você com cara de turista, ele com uma bandeja de brincos de arame. Você fazendo de tudo para se sentir de férias. Ele rindo da sua cara como se vivesse eternamente de férias.
Então ele se aproxima, conta histórias fascinantes de quem já rodou o mundo, enquanto você sabe que morria na frente de um computador. Você se comove e leva os brincos. Para se sentir mais liberta e depois abandoná-los em algum lugar da mala.
Até que um dia, quando você estiver muito puta com a lei da mais valia, vai se lembrar do sujeito, vai se lembrar das tais histórias e vai se perguntar se felicidade não é aquilo que se vende junto dos cocos da praia ou nas bandejas de brincos de arame.
Quanta vida é desperdiçada enquanto o trabalho nos consome?
Odeio hippies. Eles são um calo na minha excitação em relação ao mundo corporativo.
Mas obviamente sem saber disso, Mathias se aproximou. Trazendo sua bandeja de brincos de arame, ele vestia um chapéu que me lembrava um duende e possuía olhos espetaculares, azuis e bem firmes. Tentei desviar a atenção, mas ele foi mais insistente. Conseguiu que eu desse um sorriso para que então ele se aproximasse.
- Você enxerga bem? – Ele me perguntou isso com um sotaque bem carregado.
- De onde você é? – retruquei.
- Sou alemão. Mas não gosto disso. Estou no mundo há muito tempo.
- Jura? O que você está fazendo aqui?
- Fugi da Alemanha. Você enxerga bem?
- Como você chama?
- Mathias.
- Você não sente saudades da Alemanha? Eu adoraria morar lá.
Ele permaneceu em silêncio.
Percebi por uma razão estranha que aquela reação ríspida era fruto de alguma ferida, da qual Mathias preferia silenciar. Enquanto eu o bombardeava com perguntas que respingavam meu ódio pelos hippies, ele pegou um pedaço de arame e um alicate bem fino.
- Você enxerga bem?
- Não sou míope.
- Então toma.
Enquanto se esquivava de minhas perguntas, Mathias confeccionava com muita habilidade um objeto de arame. Tratava-se de um óculos em miniatura, para ser pendurado na ponta do nariz.
- Vou continuar sem enxergar nada com esses óculos tão pequenos. – Eu disse.
- Se não souber ver o que é pequeno, não vai saber o que é beleza.
- Você me deu esses óculos para ver seus brincos, certo?
Mathias riu.
- Não. Te dei esses óculos para você ver o mundo. Os brincos eu só queria te mostrar.
- Desculpa, estou sem dinheiro.
- Tudo bem. Obrigado. A gente se encontra.
Mathias partiu. E eu permaneci com os pequenos óculos na ponta do nariz. Odiando os hippies.
Hippies sabem que toda liberdade tem um preço. Mas a beleza não.
Desperdiçamos muita vida na frente dos computadores nos esquecendo disso.

domingo, julho 19, 2009

Sabedoria de mãe

Mães falam. Exaustivamente. Como se a nossa cabeça tivesse uma capacidade infinita de absorver fatos, conselhos, regras e até nome de pessoas que nunca conhecemos. E não apenas falam, como também repetem tudo aquilo que dizem. Exaustivamente. Mães eternamente desafiam a nossa capacidade de gravar informações. A minha mãe não é diferente.
De modo que às vezes, em nossas conversas, meu cérebro permanece em ponto morto, apenas observando o som das palavras, como se elas dançassem até atingir os tímpanos. Não é maldade. É que nesses momentos minha atenção amolece e vai longe, até que uma frase mais brusca venha me resgatar.
Mas longe de casa, percebemos porque as mães falam e repetem tanto as coisas. É uma pena que o mundo não obedeça à lógica maravilhosa das mães. Mas nas razões das sem razões, que devem morar no cordão umbilical dos fatos, as mães sabem o que dizem. E, cedo ou tarde, você vai se lembrar disso.
A minha mãe, por exemplo, sempre me alerta quanto ao fato de consumir determinados tipos de alimentos longe de casa ou em lugares pouco seguros. No entanto, como eu já comi em muitos lugares estranhos nessa vida, quando vi aquela lasanha de palmito com camarão repousar fumegante sobre a mesa, eu, obviamente, não lembrei da minha mãe. Pudera, com o estômago apertado e a boca salivando, eu só conseguia imaginar o trajeto mais rápido para aquela iguaria atingisse o meu prato. E, conseqüentemente, o meu estômago. Comi como uma rainha.
E rainha que é rainha, é coroada, obviamente: no trono. Trono que permaneci praticamente a madrugada toda, suando frio e tendo arrepios os quais é melhor não descrever para não lembrar. Um verdadeiro episódio de terror.
Não é a toa que as mães falam tanto.
Me lembrei disso, depois revisitar aquela frase, sempre repetida, com palavras que se amontoam no meu cérebro quando ela fala: “não se come palmito e camarão em qualquer lugar”.

quinta-feira, julho 16, 2009

Viagem ao centro de mim

"Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver”. (Amyr Klink – Mar sem fim).

Tenho uma mania besta de dobrar as orelhas das páginas favoritas dos livros que leio, antes de devolvê-los à minha estante. Deixar meus livros ali marcados é meu jeito de não abandoná-los sobre o pó. Uma espécie de instinto maternal sobre a literatura que consumo e cativo.
Em alguns momentos, instintivamente e quase como um ato de fé, eu sigo até a estante e busco algumas das minhas orelhas. Confesso até que tenho as minhas favoritas e sinto um prazer indescritível em poder voltar a elas para ler novamente. É como congelar um sentimento em um momento. Uma espécie de fotografia sem imagem.
Logo depois de arrumar as malas, segui até a estante. Abri orelha feita na página 77 do livro “Mar sem fim” do Amyr Klink. Li Amyr quando tinha uns quatorze anos. Ou melhor, devorei o livro. Voltar a essa orelha sem dúvida me traz lembranças frescas do que àquela época eu chamava de “liberdade”. Foi um livro que me marcou muito.
Abri o livro na página da orelha, li e depois fechei a mala, certificando-me de que meu diário de viagem seguia junto.
Embarcávamos eu, meu diário e a nossa arrogância acerca do mundo que imaginávamos. Por isso, iríamos lá, ver com os próprios olhos o mundo, na companhia óbvia de mim.
Como não se pode fazer orelhas sobre as experiências e pessoas que cruzam nossos caminhos, escrevi algumas dessas histórias que se seguem.
Como se através do mundo que passava pela janela do ônibus eu traçasse um caminho para dentro de mim.
Um homem precisa viajar. Eu, mais do que tudo, também precisava.