domingo, abril 27, 2008

Lisa

Um latido rouco e o focinho encostado no sofá. Ela tinha seu jeito único de protestar por carinho e não sossegaria enquanto eu não coçasse sua orelha da forma como gostava, para então amolecer e deitar-se ao meu lado.
E enquanto esse pequeno ritual perdurou, assistimos a muitos filmes bobos na TV, lemos quase uma biblioteca inteira e estudamos para o vestibular. Passeamos pelo parque, condecoramos uma árvore como favorita, batizada em inúmeros jatos de xixi. Tivemos finais de semana incríveis, onde ao final do dia, ela se estendia exausta e arfando, no porta malas do carro do pai, sem ter mais forças para brincar.
Conheceu meus namorados, desaprovou todos e chegou a ficar no meio de um beijo que uma vez fui roubar. Ciumenta. Sempre ciumenta. Ninguém poderia receber mais atenção do que ela e, de fato, ela fazia por merecer.
Mas enquanto ela ficava ali, eu cresci. Saí de casa e ela deixou de ser minha companheira das revoltas chorosas no quarto, dos ímpetos de adolescente, dos passeios no parque. E passamos a nos encontrar aos finais de semana, quando o motor do carro desligava e um latido familiar antecipava uma saudação, que sempre teve o poder de me derreter. Dificilmente eu me encontraria com ela, sem que as minhas calças ficassem sujas de pêlos e baba, mas ainda sim, eu sorriria.
Dos encontros mais engraçados, lembro-me quando de biquíni me estendia ao sol, até que inoportunamente ela aparecia, com um pedaço de trapo qualquer para se deitar ao meu lado. Ela demorava a se convencer de que sua cobertura peluda não era nada propicia a um bronze e quando o calor ficava insuportável, ela se recolhia à sombra com a língua de fora e as orelhas pingando. Mas sempre a espreita me aguardando, até eu levantar.
Teimosa, sempre teimosa. Questionava as regras da casa como ninguém. E mesmo velha não se esqueceu de dormir no sofá proibido, reclamar pela única casquinha da pizza do meu prato, virar toda a sua comida no canil quando era presa injustamente, e, fazer xixi pela casa quando se sentia sozinha. Ela foi capaz de destruir os jardins da minha mãe, sem destruir a sua paciência. Ela foi capaz de trazer pombas mortas para a cozinha e ganhar alguns gritos e umas risadas. Ela foi capaz de tornar o incompreensível latido, em um código que dizia mais do que poderia dizer.
E com o tempo passando, ela foi ganhando pêlos brancos pela cara, se aquietou em um sofá só dela com todos os requintes de um cão idoso.
Um dia então, o motor do carro desligou e nenhum latido me deu boas vindas. Um vazio enorme, que me fez sentir pequena, dizia algo sobre uma nova saudade. Abri a porta sem encontrar o mesmo rabo abanando, suas orelhas se arrastando pelo chão e o uivo que me causava um sorriso.
Eu. Eu que não acredito no céu para homens nem para cães. Eu, que vivi tanto de mim com ela ali do meu lado. Eu, que de uma forma egoísta queria que ela estivesse lá para sempre. Eu...
Soube então, que a partir daquele dia, de fato estaria, com seu jeito único de protestar, mas dessa vez, com focinho encostado no meu coração. E nessas horas eu sentiria muita falta de coçar suas orelhas até ela amolecer e deitar-se ao meu lado.

sexta-feira, abril 18, 2008

Coisas da vida

A verdade é que era muita estrela para pouco céu. Mas eu estava ali, me sentindo pequena e desengonçada, numa tentativa tímida de brilhar. Timidez que não cultivo e me dano.
Estava ali, questionando todos os meus erros, procurando qual a prateleira do supermercado que vende paciência, me perguntando por que o céu na verdade era o caos e não o brilho.
E me deu uma vontade imensa de virar pó.