domingo, outubro 26, 2008

Na terceira pessoa. Do singular.

“Não se deve confiar nas pessoas que tem medo da solidão, pois elas, na verdade, nunca estão realmente sós. Usam de vários expedientes para preencher com homens, mulheres ou álcool o vazio da sua imaginação. Ignoram que, na verdade, a solidão não pode ser preenchida. Ela não tem fundo. De nada serve fugir dela. A solidão é um amante que precisa que lhe sejamos infiéis.”
(Martin Page – A gente se acostuma com o fim do mundo)



Virou a chave e sentiu um leve arrepio sobre a espinha. Decidiu então pisar com cuidado para que o choque não tão fosse doloroso. Sentia medo do que iria encontrar.
A falta de hábito lhe trazia um grande desconforto. Mas não encontrou nada além da bagunça que se acumulara durante a semana. E a bagunça lhe era familiar, já que se assemelhava ao que tinha dentro de si.
Há tempos que a vida não parava para que uma sexta feira fosse enfim um lugar comum em seu cotidiano. Silenciosa, vazia e banal.

Tirou os sapatos. Passeou com os dedos pela agenda do celular, procurando algum sentido. Poderia acabar com aquele silêncio em um toque, mas não queria. Queria ir ao encontro do seu silêncio, até que nele, finalmente encontrasse paz.
Deixou os papéis trazidos do escritório sob o sofá. Caso a solidão se tornasse assustadora, chamaria o trabalho para entorpecer a cabeça. E o cérebro ocupado já era o suficiente para não sentir, embora uma suave letargia, aos poucos, corroesse sua menor vontade por sentir algo.
Em nome do corpo febril, enfiou guela a baixo um coquetel de anti gripais. Não tinha muitas forças para brigar com os estímulos lentos de seu corpo. Que os remédios se encarregassem dessa guerra.

No canto da sala, a ferida exposta. A mochila intacta do último amor que havia embarcado. Decidiu que permaneceria ali por mais uns dias, até que a sua falta de coragem cansasse e enfim ela se sentisse determinada a esquecer. Enquanto isso cultivaria o monumento à esperança perdida. E seguraria então as lágrimas. Não valia a pena.

O leite azedo e esquecido no bule. Na geladeira, uma coleção de frios na barriga e mofos. Prateleiras de amores inesquecíveis. Aquele também seria guardado, para depois empoeirar.
Procurou, enfim, nas luzes de São Paulo alguma espécie de contentamento. Algum sonho que a fizesse sorrir. Ao menos momentaneamente. Mas eram só luzes de uma sexta feira quente, onde talvez a maioria das pessoas se refrescasse com um copo de cerveja gelada. Mas ela estava ali e ali ficaria por muito tempo. Vivendo na terceira pessoa. Do singular.

Um comentário:

Luciana Pinto disse...

Pois é, Helga! O João é um amigo querido que tem por dom juntar pessoas. E que de igual forma, falou-me muito bem sobre seus escrito. Semana passada recebi dele o link para o seu blog, e o adicionei aos favoritos. Vi o que você escreveu sobre Hilke e já ali achei um primeiro ponto em comum...Escrevi algo também sobre o poeta, a partir de uma peça que assisti sobre sua relação com Lou Salomé.
Ia inclusive perguntar-lhe se posso "linká-la" ao papel borrão. Fico contente que tenha gostado dos rabiscos e apareça sempre que quiser!
Um abração!