domingo, dezembro 12, 2010

Meu heterônimo

"Há muito tempo que não escrevo. Tem passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me destingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num reverbéro alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste e ter a consicência de que, com a minha tristeza, se cruzou agora - visto com o ouvido - o som súbito de eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu."

(Fernando Pessoa, O livro do desassossego, 139)

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