sábado, junho 06, 2009

Diagnóstico

(Para meus amigos da Oficina de Contos da Casa das Rosas. Escritores de verdade.)

Quando a porta do elevador se abriu, fui de encontro a uma solidão pouco habitual. No corredor escuro, não se ouviam os ganidos histéricos do cão da vizinha, nem o som abafado da televisão. Não havia cheiro de bolo. Apenas frio e silêncio.
Toquei a campainha e acompanhei seus passos se aproximarem lentos até a porta. A maçaneta girou com dificuldade e diante do vão já pude reconhecer seus olhos azuis, flamejantes, inundados de surpresa. Quando me viu, sua face automaticamente se transformou em um emaranhado de rugas que se amontoavam para dar espaço a um sorriso. Me abraçou sem muitas cerimônias.
Repetiu inúmeras vezes a alegria em me ver, enquanto por dentro, eu lamentava o trabalho, a correria e a distância que agora me fazia visita. Pediu para que eu me acomodasse na sala enquanto me traria uma surpresa. Afastei o tricô estendido no sofá, me sentei em um canto e aguardei ansiosamente enquanto ela veio trazendo consigo um enorme saco de fotografias:
- Olha só o que achei escondido no alto do armário!
Era como se me trouxesse um tesouro. Sentou-se ao meu lado e buscou os óculos pendurados no pescoço. Passeou os dedos sobre os plásticos que guardavam as fotos já amareladas e começou a contar com orgulho a história de toda a família. Cada relato era permeado de incertezas. Fui percebendo que as datas e os rostos lhe eram confusos. A única lembrança que era viva e contada com riqueza de detalhes, era a saudade de meu avô, que parecia não se perder no tempo.
Ao perceber que ela se esquecia via o diagnóstico saltar junto da sujeira que se escondia debaixo do tapete. O córtex cerebral iria murchar e aos poucos as lembranças iriam se apagando. Talvez ela perdesse o controle de si. Talvez os remédios atenuassem esse processo. Nada era preciso nas palavras do médico, exceto a evidência da minha angústia.
Eu me perguntava incessantemente se esquecer era doença ou era benção, diante de tudo o que é o tempo. Mas ela persistia ao meu lado, lutando em favor de sua memória, enquanto eu seguia corrigindo as datas, dando nome às pessoas, fazendo-lhe lembrar as palavras. Queria estar ao seu lado, brigando pela mesma guerra injusta. Mesmo sabendo que sairíamos perdendo.
Ela mesma já tinha consciência disso e ao ver que eu era cúmplice do seu esforço me confessou seu medo da morte. Eu, sem saber o que dizer, não contive as lágrimas. A morte, na verdade, pouco assustava. Temia o esquecimento, pois sabia que estávamos vivos, todos, em sua memória.

4 comentários:

A. Alves disse...

seu blog é SENSACIONAL. ´Confesso admirar profundamente o seu estilo, de modo a, quem sabe um dia, incorporar algo dela ao meu jeito de escrever.

parabéns. a sua escrita tem uma sensibilidade ÍMPAR =)

Helga disse...

A. Alves,

Muito obigada é pouco! Muito bom ler algo como esse recado! Não tenho nada exceto a minha verdade, que procura talhar com as palavras!

Venha sempre me visitar por aqui!

Vc é super bem-vindo!

b'jones

Helga

Unknown disse...

Caramba Helga, é de verdade né... hoje tava na aula de piano, tinha uma turma de 3a idade, alguns sabiam por que estavam lá, outros nem tanto, mas estavam alegres, cantando, sorrindo.
Estavam vivendo, e era hora da aula de música, e isso justificava tudo. Inclusive estarem felizes. Essa alegria sincera dá uma vontade de chorar às vezes, eita...

Gostei bastante do que escreveu! É bem diferente, bejão

André Braga disse...

Olá Helga, tudo bem?

Meu nome é André Alves, fui um dos participantes da oficina de contos.
Quando você leu esse conto, me identifiquei na hora, porque também tenho um parente próximo com alzheimer (infelizmente). Na época comecei a escrever um conto inspirado nesse seu, mas deixei-o um pouco de lado, não conseguia termina-lo.
Fiz uma outra oficina, que também apareceu um outro texto sobre o mesmo assunto, dai resolvi sentar-se na frente do PC e termina-lo.

Bem, o resultado está ai:

ETERNA BRINCADEIRA
http://mundoid.blogs.sapo.pt/36886.html

Vlw pela inspiração.

Bjo

André Al
MUNDO ID
http://mundoid.blos.sapo.pt/