terça-feira, março 31, 2009

Frágil

Sobre a mesa, além da cerveja que descongelava, derretia uma conversa cheia de farpas e rancor. Talvez um pouco de tesão recolhido trouxesse alguma magia para os olhares que se entrelaçavam com um certo cuidado. Até que de repente, Ele desaba o escudo sobre o campo de batalha e diz:

- Sabe qual é o seu problema? O seu problema é que você assusta na mesma intensidade que apaixona. Eu olho você encantado e tenho vontade de fugir ao mesmo tempo. Porque você diz o que pensa, dirige seu próprio carro, paga suas contas, tem sua profissão. Você faz curso de mecânica e de culinária e depois ainda faz as unhas. É como se você não precisasse de ninguém, entende? É como se você não fosse frágil.
Frágil. Frágil. F-R-Á-G-I-L. Fráááááágggggiiiiiilllllllll.
Aquela palavra ecoava dentro dela com a mesma intensidade de uma grande moeda que caiu sobre um bueiro há tempos abandonado. Aquela palavra. Aquela simples palavra abriu então aspas para o seu pensamento.
“Frágil. De fato não se lembrara a última vez que havia se sentido assim. Talvez há muito tempo. Não era boa com datas. Ahhh sim... Aquele dia. Aquele dia era um bom dia para se dizer que havia sido frágil.
Contava há época com dezenove anos. Havia saído de casa há pouco e ainda era novata para dividir uma vida consigo mesma.
Um belo dia, desses dias em que a vida parece comum, recebeu uma visita pouco esperada e nada bem vinda de um inseto marrom e asqueroso que descansava imponente sobre o centro da sala. Sim, era uma barata.
Seu primeiro impulso, frágil menina que era, foi gritar desesperadamente na esperança de que uma mão máscula movesse um chinelo 43 objetivamente com o intuito de massacrar a pobre criatura. Mas os berros persistiram, a garganta secou e a situação não mudou. Berrou mais um pouco. Dessa vez por não saber o que fazer. Sentia a sua fragilidade pulsar nas cordas vocais, mas a situação permanecia a mesma e a barata ali, imóvel.
Na terceira tentativa de gritar, algo dentro de si rompeu furiosamente. Virou-se. Abriu a porta do armário. Retirou um de seus chinelos de plástico e arremessou ao encontro da criatura marrom. O tiro certeiro fez um som estranho, e sobre o chinelo atirado ao chão surgiu uma pequena gosma e junto dela uma criatura estrebuchando desesperadamente. Assistiu aquela morte incrédula. Não pela pobre barata que agora dava o seu último suspiro. Mas porque percebia dentro de si algo novo. Uma força bruta. Estranhamente nova. Incompatível com uma mulherzinha indefesa que poderia ser.
Depois da barata, então, um dia queimou a luz do banheiro. E depois o chuveiro. E depois o pneu do carro furou. E como na situação da barata, nenhuma mão máscula havia aparecido para resolver o problema.
E depois vieram outros problemas, como acordar sozinha depois de um pesadelo. Ou ter um dia difícil no trabalho e chorar para as paredes. Ou ainda ficar doente e ir até a farmácia buscar o próprio remédio. Ou chegar em casa cansada e encontrar uma geladeira vazia. Ou acabar o papel higiênico.
Não, a vida não é frágil quando é tudo de verdade. E por isso, ela havia aprendido a dirigir seu carro, para buscar seu próprio remédio. Por isso, havia arrumado seu emprego, para pagar suas contas. Por isso dedicou parte de sua vida à uma profissão e uma pequena parte de sua vida para fazer as unhas. Por isso aprendeu a falar o que pensava, para não dormir com nada para engolir. Por isso atirou o primeiro chinelo. Por medo que a fragilidade empacasse seu destino. E seguiu.
Mas muito além daquela máquina mortífera e assassina, capaz de trucidar baratas e porque não homens, haviam sonhos de papel. Papel de carta. Coisa de menina. Sonhava com alguém que lhe protegesse não das baratas, mas da fragilidade de ser naturalmente uma mulher.
Como não sabia explicar. Ou talvez transparecer. Ou talvez a vida sequer lhe permitisse isso. Permaneceu ali, catatônica, lembrando do chinelo, da barata, do que realmente era frágil e...”
- Alô? Planeta Terra chamando... Você está ai?
- Opa! Desculpa... É que eu estava pensando...
- Pensando em que? Desculpa se eu te magoei, olha... Eu realmente me apaixonei por você e...
- Pensando que mulher é um bicho muito, mas muito burro mesmo.
-Hum?
- Sim, somos burras! A gente acha que homem tem medo de casamento e de dedo no cú. Mas nunca, nunca, nunquinha mesmo, a gente imaginou os homens iriam ignorar que ainda somos frágeis, só porque tem medo de mulher independente.

Um comentário:

Guilherme disse...

1º de abril, né?

Mulher matando barata..? Quase me pegou.

Beijos.