sexta-feira, junho 10, 2011

Desobediente


Certo dia, quando eu ainda era bem pequena, minha mãe apareceu com um pacote branco enrolado em um laço de fita cor de rosa. Como não era de dar presentes fora de hora, me espantei com aquela atitude da minha mãe. Mas ela me confortou rápido, pedindo para que eu o abrisse. Desembrulhei o pacote sem pensar muito e quando me deparei com um pequeno caderno cor de rosa, com folhas de coraçãozinho, um ursinho na capa e um pequeno cadeado, eu sorri em deslumbramento. Como toda menina, eu era obcecada por caderninhos e canetinhas e adesivinhos. Vivia com os meus aos montes, incansavelmente. Mas o fato daquele pequeno caderno ter um cadeado logo me intrigou e perguntei para a minha mãe porque a necessidade de mantê-lo trancado. Ela então me explicou que se tratava de um diário, onde eu deveria escrever as coisas mais importantes da minha vida e por se tratarem das coisas mais importantes, elas poderiam ser mantidas em segredo. Como eu não sabia aos nove anos de idade quais eram as coisas mais importantes da minha vida, permaneci dias, no silêncio do meu quarto, angustiada, olhando para aquelas folhas de coraçãozinho, que permaneciam em branco. Era muita coisa escrever sobre as coisas mais importantes da minha vida e de fato eu me dei conta, ali, que eu não sabia quais eram.


Meus irmãos logo perceberam que eu andava estranha. Uma certa hora do dia, me fechava no quarto e ficava um bom tempo lá na frente de um caderno cor de rosa curioso. Quando se deram conta de que no pequeno caderno havia um cadeado, perceberam que não se tratava de um caderno comum e me perguntaram o porquê do caderno secreto. Eu, na esperança de que eles me ajudassem a escrever sobre as coisas mais importantes da minha vida, contei que se tratava de um diário. No entanto, ao saber disso eles riram. Para o meu espanto meus irmãos não me ajudaram em nada com a missão de escritora e a partir desse dia montaram um verdadeiro esquema para furtar o meu diário.


Quando percebi as intenções dos meus irmãos, passei a guardar meu diário no lugar mais secreto que conhecia: dentro do vestido da minha boneca favorita. Não demorou uma semana para que eles descobrissem. Quando pegaram meu diário, ainda em branco, pois eu não sabia quais eram as coisas mais importantes da minha vida, eu fiz um escândalo. E minha mãe, com muita justiça os colocou de castigo por dois dias.


Passados os dois dias, tratei de achar um novo esconderijo: debaixo do colchão da cama dos meus pais. Mas dessa vez pareceu até que foi mais fácil. Não demoraram muito a descobrir e, novamente, eu abri o berreiro.


Enquanto eu procurava novos lugares para esconder meu diário, algo muito estranho me aconteceu. Eu me fechei no quarto naquele dia e escrevi, escrevi desesperadamente e por horas ininterruptas, até sentir os dedos das mãos doerem. Eu não me lembro exatamente o que eu escrevia, mas tinha a sensação de que eram palavras sobre as coisas mais importantes da minha vida. E quando coloquei o ponto final na última frase, eu me senti aliviada.


Não entendia porque naquele dia eu havia conseguido colocar tantas coisas no papel. Quase como um vômito ou uma epifania. Mas imaginei que algo tinha a ver com meus irmãos e suas incansáveis perseguições ao meu diário. O fato deles se esforçarem tanto atrás daquele caderninho, por pura desobediência, de certa forma tornava mais tranquila a minha missão de escrever sobre as coisas mais importantes da minha vida. Sem compreender muito, pensava que as coisas mais importantes da minha vida residiam, talvez, na simples desobediência, ainda que essa desobediência fosse a dos meus irmãos. E era exatamente por ela, que eu escrevia.


Comecei então a pensar sobre os lugares mais escusos para esconder meu diário. Para que o esforço fosse maior e consequentemente meus irmãos buscassem mais. Procurassem mais. Sabia que quanto maior fosse a desobediência, mais coisas eu escreveria.


Certo dia então, sem que eu percebesse, eles acharam meu diário. Seguiram escondidos até a sala e iniciaram a leitura. Meu pai abriu então a porta e deu de cara com os dois. Quando percebeu que liam o meu diário, meu pai ficou tão bravo, mas tão bravo que discursou horas sobre a intimidade das pessoas e o direito à privacidade. Dessa vez, meus irmãos choraram mais do que eu. Mas eu assisti com olhos tristes, finalmente, aquela perseguição acabar.


Eram sete horas de uma noite fria. Da janela do décimo quinto andar eu via o trânsito da Avenida Paulista fechar como uma tempestade. As buzinas gritando raivosas. Quanto tempo se perdia ali? A xícara com um resto café esfriava sobre a mesa. Na tela do computador 1479 e-mails não lidos e o telefone, ao lado, tocando estridente. Atendo. A secretaria na linha me pede para passar a ligação de mais um cliente. Mas eu permaneço estática. Outro e-mail pula em minha tela, dessa vez avisando sobre o vencimento do cartão de crédito. Desvio o olhar rápido e permaneço estática, olhando quase sem ar. Na Avenida em meio aos carros dois meninos correm. Correm desafiando a lentidão do trânsito, a solidão estática daquela noite fria. Eu desligo o telefone sem dizer uma palavra. Pego minha bolsa, vou até o elevador e quando saio só me lembro de ir ao café mais próximo. Eu me sento. Abro a bolsa, pego a caneta e começo a escrever. Escrevo como se fazendo o errado, fizesse o mais certo. Escrevo porque as palavras me brotam como o ar que me falta. Escrevo procurando respirar sobriedade além desse ar poluído. Escrevo e os meninos correm, agora, dentro de mim. Escrevo porque ali residem as coisas mais importantes da minha vida. Escrevo por desobediência.

quinta-feira, junho 02, 2011

Escrevo ou fragmentos

Continuei escrevendo. Em linhas certas e ao mesmo tempo duvidosas. Escrevia pelo meu inconformismo de morrer todos os dias, um pouco, no trânsito estático. Escrevia para respirar alguma sobriedade além desse ar poluído. Escrevia pelos amores que não podia viver e pelos que precisavam morrer. escrevia para desafiar o sono, o cansaço e a minha incompatibilidade com a lógica do relógio. Escrevia o encantamento sobre o papel branco que carrega em si a única liberdade realmente absoluta. Escrevia para me sentir, para não ser mais uma, sonhando na estação do trem. Escrevia para não ser engolida pelo vencimento das minhas contas, para não ser hinotizada com os juros do cartão. Escrevia porque o meu silêncio não me bastava e ao mesmo tempo o meu grito não me continha. Escrevia para seduzir o escuro. escrevia para negar a cegueira conduzida pelo cotidiano. Escrevia pela imortalidade da suadade. Escrevia pela música dos teclados. escrevia pela solidão que vive no óbvio da vida.Escrevia quando me faltava ar. Escrevia porque os músicos tocavam, porque os pintores pintavam e porque os poetas diziam. Escrevia para me desgrudar do óbvio e da preguiça. Escrevia para aquecer a alma, para escutar dentro. Escrevia por meditação. Escrevia pela vontade de perder a vontade, que é sempre uma insensatez. Escrevia pela loucura sufocada nas minhas meias calças. Escrevia porque era maior do que eu: feito fome, libido, sede e vontade de fazer xixi. Escrevia para me libertar dos padrões dos relatórios. Escrevia por me apaixonar pelas palavras. Escrevia por que meus irmãos corriam dentro de mim, pelas coisas mais importantes da vida. Escrevia por desobediência.

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Lembranças coloridas para um silêncio em preto e branco


Ela rasga o saquinho de chá com destreza, despejando todo o seu conteúdo na xícara ainda fumegante. O perfume das ervas me invade com a mesma violência do silêncio que se instala sobre o absurdo. Permaneço por alguns longos segundos atônita, enquanto ela gira a colher com naturalidade. Eu giro ao mesmo tempo em mim, nessa certeza de vê-la indo. A todo tempo ela está indo. Se esgotando.
“Vó, esse não é o adoçante”.
Ela olha a xícara e demora algum tempo até finalmente perceber. “É mesmo!” – ela me lança um sorriso sem graça. “Essa minha cabeça. Não está ajudando muito.” Eu digo a ela que tudo bem. Eu digo a ela com a mesma tranqüilidade com que ela me dizia quando eu tinha medo de escuro “Tudo bem”.
“Vem, deixa que eu recolho. Vamos dar um jeito nisso, ok? Você ainda quer o chá de laranja?”. Agora o silêncio parece que também toma conta dela. Até que pouco encorajada, como quem acorda de um sono distante, ela me responde que sim.
Eu mergulho o saquinho de chá em uma nova xícara e despejo a água. Antes que minha tristeza tome conta dela, eu reitero, “Tudo bem Vó. Não tem problema.”
Levanto e vou até a cozinha, dessa vez para buscar a faca do pão que faltou. Quando me sento novamente ela faz sua velha e sábia pergunta “E o namorado?”. Dessa vez eu sorrio sem jeito. “Ahhh Vó... Está muito difícil arrumar um homem nos dias de hoje” e dou uma gargalhada, dessas feitas para desconversar.
“Eu tenho rezado para você. Rezo para todos vocês. Todos os dias, eu começo na sua mãe e depois vem vocês, e, depois vem sua tia e seus primos e depois seu tio e a família dele”. Os nomes dessa lista são necessariamente trocados. E eu a corrijo sutilmente, enquanto ela me diz “É? Não, esse é aquele”.
Eu digo a ela que tudo bem. No fundo, quem nunca teve medo de escuro?
“Que bom que você reza por mim. Vó pede pro santo um bonitão, moreno, forte, barriga tanquinho, rico e, por favor, que não seja gay”. Caímos as duas na risada.
“É difícil arrumar um homem” ela me diz.
“Vó me conta aquela história de como você conheceu o Vô?”. Eu simplesmente adoro essa história e acho que já a ouvi milhões de vezes. Fico extremamente feliz por ela esquecer que me conta, pois sua alegria é como se nunca tivesse me contado. A hora que mais gosto, é quando ela olha de canto e cora, e depois, logo em seguida, abre um sorriso largo, como se fosse hoje. Como se fosse ontem esse tempo curto das lembranças.
“Você sabe, naquele tempo não tinha shopping e internet. As pessoas se conheciam na praça. No domingo, depois da missa. Acabava a missa e todo mundo ia para a praça. Era engraçado, as mulheres rodavam para um lado e os homens para o outro. E assim que a gente flertava. Um dia eu percebi que ele me olhava. Mas ele era tão garboso (vou ao delírio quando ela usa essa palavra) que eu demorei a entender que era comigo. Ele tinha uns olhos azuis. Parecia um artista de cinema...”
O passado é um lugar nada confuso agora. Até mesmo as palavras se encaixam nas frases, sem lhe dar nenhum trabalho. Eu fico com os ouvidos bem abertos, deixando aquela história tomar conta da sala inteira.
Lembro-me de quando era pequena e enquanto ela fritava o bife, eu permanecia debruçada sobre a mesa com a minha caixa de lápis de cor, entretida com algum desenho. A gordura estalava e ela me perguntava o que tanto eu desenhava. Sem perceber, eu lhe contava histórias fabulosas.
Enquanto minha Vó descreve todos os seus suspiros e os olhos do meu avô, seguro minha caixa de lápis de cor com toda força. Eu sigo pintando, com todas as cores que posso, nossas lembranças coloridas. Até que o silêncio nos cubra de preto e branco.
Enquanto ela se vai, eu fico, eu insisto, em todos os momentos.
Não tem problema ter medo de escuro. Tudo bem.

sábado, janeiro 15, 2011

Cinderhelga

(http://www.youtube.com/watch?v=SUP2nEM6yYQ)


"Era uma vez, uma mulher que via um futuro grandioso para cada homem que a tocava. Um dia, ela se tocou."

(Alice Ruiz)

domingo, dezembro 26, 2010

A busca

(“Quem sou eu, sonhando assim e pensando assim. Que solidão dentro de mim. Eu sigo assim sonhando pra viver. Eu continuo a sonhar. Com os pés no chão, não tenho onde pisar” – Nem todas as cores. Miro Dottori )

Ontem, quando dei a última volta na chave para trancar a porta de casa, senti um arrepio estranho percorrer a espinha. Resisti por alguns minutos, achando que se tratava de alguma neurose instantânea. Tenho dessas de vez em quando, portanto simplesmente me ignorei e chamei o elevador. Mas o incômodo persistiu: era como se algo beliscasse a minha memória. Eu não sabia exatamente o que era. Então vasculhei os bolsos da bolsa e depois revistei os da calça. Mas aparentemente estava tudo no lugar: documentos, chaves, carteira, celular, agenda, filtro solar, remédios para dor de cabeça. Meu arsenal anti-tudo que carrego comigo diariamente.
A luz do elevador iluminou o hall e o rangido habitual da porta me convidou a entrar. Não tive coragem. Sabia que estava esquecendo algo. Algo que me parecia muito necessário.
Dei alguns passos para trás. Retrocedi. Eu estava atrasada. Mas e daí? Eu sempre estou não é mesmo? Voltei à porta e rapidamente entrei em casa. Voei direto à gaveta de calcinhas. Escondo de tudo ali. Me escondo até de mim mesma. Revirei. Procurei. E nada ...
Fui então ao canto do armário, onde fica amontoado o ferro e as roupas limpas. Olhei, pesquisei. Mas estava tudo no mesmo lugar. Minha bagunça organizada. Tateei a cama. Desarrumei ainda mais os lençóis. Joguei os travesseiros ao chão. Tudo ali. No mesmo lugar. Corri para a última gaveta da cozinha. A espátula. A toalha tão pouco usada. Uma caixa de fósforos. Tudo igual. A única novidade era essa sensação: de estar esquecendo alguma coisa. De ter perdido algo.
Fui à estante de livros. Com os dedos percorri os títulos, até que involuntariamente, parei. “Felicidade” era o título onde meu dedo restava imóvel. E sobre ele, eu já não tinha nenhuma vontade. Onde é que eu havia esquecido mesmo?
Procurei a felicidade então nas gavetas. As tantas outras por onde não havia estado. E depois nos armários. E até no pó, que eu não imaginava que era tanto, embaixo da cama. Procurei felicidade na euforia, esta que vem de qualquer coisa, de qualquer momento. E por um segundo, achei que ela estava ali, palpável, em algum riso. Procurei felicidade em lugares. Em empregos perfeitos. Em chefes perfeitos. Em homens perfeitos. Na família perfeita. Que eu nunca encontrei. E procurei felicidade em amores. Inclusive, aqueles que eu imaginei. Procurei felicidade na serotonina do meu chocolate. Nas minhas incontáveis doses de cafeína. Na endorfina conquistada depois de corridos os meus cinco quilômetros muito bem suados. Procurei felicidade nas rodas da minha bicicleta. No divã dos meus terapeutas. Nos gostos que o mundo pode ter. Nos cheiros. Procurei felicidade na saudade. No fundo da bolsa. No fundo do bolso. No fundo do túnel. No escuro.
Procurei felicidade em um corpo perfeito. Em cílios curvados e uma pele impecavelmente sem espinhas e sardas. Procurei felicidade além dos meus poucos seios. Além dos meus fartos quadris. Além do que eu tenho de feio e não resiste a nenhum parâmetro de beleza. Procurei felicidade no que evito.
Procurei felicidade em receitas, em dietas, em mandingas.
Procurei felicidade entre moedas. Na multiplicação das invariáveis da economia. Na poupança. No décimo terceiro. E em liquidações.
E procurei felicidade pelos cantos. Até mesmo aquele que você me deu, para eu ficar te esperando. Procurei felicidade nas fotografias. Nos amigos que se foram. No pôr do sol. Incansavelmente eu procurei felicidade nos teus olhos. Na tua música.
E procurei felicidade nas asas do avião que me levava distante para qualquer lugar. Procurei. Farejei. Mapeei. Desvendei. Eu procurei felicidade no prazer. No silêncio. No barulho. No tango. No samba. No jazz. Na rumba. No pop.
Eu procurei felicidade num orgasmo. Numa catarse. E numa epifania.
Eu procurei. E revirei. E procurei mais.
Eu procurei felicidade nas garantias. Na imobilidade. Nas certezas. Até as que eu construí, com fragilidade de verdades imperfeitas. E procurei felicidade sobre o que era imóvel, pouco dinâmico e instável.
Eu procurei felicidade no mapa. No Google. Na lista telefônica. E na coleção de Barsa.
Eu procurei felicidade na dor. E depois na farmácia. Eu procurei felicidade nas ruas, nas esquinas, nas bibliotecas. E procurei até em
alguns livros de direito.
Eu procurei felicidade na bagunça e também na organização. Mas eu não sou nada disso.
Eu procurei felicidade. Com todas as minhas forças.
E me cansei.
Deixei a casa bagunçada. Travei novamente a porta. A luz do elevador iluminou o hall. Como sempre o seu rangido habitual me convidou a entrar. Abri a porta. Entrei. Desci. Tirei o tênis. Depois a meia. E saí, caminhando descalça pelo mundo.
Quero a felicidade que se pisa com os pés.

domingo, dezembro 12, 2010

Meu heterônimo

"Há muito tempo que não escrevo. Tem passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me destingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num reverbéro alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste e ter a consicência de que, com a minha tristeza, se cruzou agora - visto com o ouvido - o som súbito de eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu."

(Fernando Pessoa, O livro do desassossego, 139)

quarta-feira, setembro 22, 2010

Desperto

(“Várias vezes, no decurso da minha vida opressa por circunstâncias, me tem sucedido, quando quero libertar-me de qualquer grupo delas, ver-me subitamente cercado por outras da mesma ordem, como se houvesse definidamente uma inimizade contra mim na teia incerta das coisas.
Arranco do pescoço uma mão que me sufoca. Vejo que na mão, com que a essa arranquei, me veio preso um laço que me caiu no pescoço com o gesto de libertação. Afasto, com cuidado, o laço, e é com as próprias mãos que me quase estrangulo.” – O livro do desassossego/ Fernando Pessoa)


E se despertasse, louco, inquieto,
Como quem lhe tira o sono,
Como quem salga a boca com sede,
E, de repente, lhe tira a luz.
E se despertasse, errado, incerto,
Com a mesma violência do veneno que percorre as veias,
Como quem lhe rouba o pensamento,

E te entrega a eternidade dos minutos.
E se despertasse, feito dor, incômodo,
Uma formiga passeando sobre sua orelha e as mãos agora atadas.

Necessidade de gritar, com a boca fechada.
E se despertasse assim, intenso.

Como febre, soluço ou arrepio.
Haveria de me esquecer, feito guarda-chuva quebrado no canto do armário?



quarta-feira, agosto 18, 2010

João-Bobo

(Tenho o passo marcado/ O rumo traçado sem discussão/ Tenho um encontro marcado com a solidão/ Tenho um pressa danada/ Não moro do lado/Não chamo João/ Não gosto nem digo que não/ É inútil (...)
Vou correndo, vou-me embora/ Faço um bota-fora/ Pega um lenço agita e chora/ Cumpre o seu dever/ Bota força nessa coisas/ Que se a coisa pára/ A gente fica cara a cara/ cara acara cara a cara/ Com o que não quer ver – Chico Buarque “Cara a Cara”)


Ainda muito pequena, ela não entendia porque razão aquilo poderia ser chamado de brinquedo. Com um sorriso plástico, inflado, o João-Bobo se debatia de um lado para o outro, sem protestar. Por isso a menina nunca soube se no final das contas ele era feito para bater ou para apanhar. Fato é, que mesmo quando caía, o João-Bobo logo se levantava. Inútil. Indo e vindo de um lado para o outro, levantando e caindo sobre o mesmo eixo. Como se levitasse entre a persistência e a idiotice. Como se persistisse entre a teimosia e o cansaço.
Que graça tinha em ver o João-Bobo cair? Ela se perguntava. Que brincadeira mais estúpida podia ser aquela? Mas quando tinha cinco anos o João-Bobo furou, e a menina não chorou para sua mãe comprar outro, pois já era grande.
Sabia que é possível chorar ser deixar cair lágrimas? Não é fácil, mas é treino. Você desvia o olhar para um ponto fixo qualquer e se distraí. Se os olhos insistem em marejar, você apenas fecha as pálpebras lentamente, até anestesiar. Se a garganta fechar, você junta um pouco de saliva e engole rápido. Não é fácil, mas é treino.
Ela aprendeu a fazer isso, depois de um dia quando já mulher, ficou envergonhada pelas pessoas que a viam chorar no trem. Às vezes ela chorava, quando tudo por dentro indignava. Às vezes ela chorava, quando as perguntas não bastavam. Às vezes ela chorava a certeza de ser sempre torta, de ser sempre incorreta, de ser sempre inadequada. Inadequada era uma palavra que se adequava bem a ela. Mas era preciso cair e levantar, todos os dias no mesmo círculo. Com o mesmo sorriso plástico, inútil. Se debatendo de um lado para o outro.
Se ao menos pudesse, a menina engoliria toda a arrogância que lhe embrulhava. Se pudesse, a menina levantaria e faria tudo sem levantar. Se pudesse, se soubesse, ao menos o caminho. Os trilhos do trem reluziam, um ponto fixo, sem chorar.
Aos cinco anos. Aos cinco anos o João-Bobo furou e ela aprendeu a chorar sem lágrimas.
Quem disse que a gente não levanta? Quem disse que a gente sabe qual a diferença entre a idiotice e a persistência? Quem disse que os caminhos não estão sobre o mesmo eixo?
Que brincadeira mais estúpida pode ser esta que a gente insiste em viver?

sexta-feira, junho 18, 2010

"Saramargo"

Desde a primeira vez que abri um livro seu, li tudo com uma certa birra. Na minha cabeça eu permanecia segurando a caneta vermelha da tia Emília, minha professora da segunda série, que fez dos meus textos um borrão, por conta da falta de vírgulas.
E ler aquele homem, que escrevia sem pontos, travessões ou vírgulas, era um desafio à minha infância de dicionário Aurélio. Era uma ofensa ao meu português entalhado em vermelho. Lembrava-me das primeiras lições, logo que aprendi a ler, “a vírgula é o momento em que o texto respira”. Saramago sempre me tirou o fôlego.
E por me deixar assim sem respirar durante frases e frases, apelidei-o de “Saramargo”, especialmente após sua literatura tornar-se obrigatória para o vestibular.
Era estranho. Havia um exercício imenso em entrar naquele texto. Havia uma concentração enorme para atravessar aquelas palavras, entender suas frases, enfim, permanecer sobre as suas páginas.
Quando ganhou o prêmio Nobel, olhei o com mais desdém: como pode ser tão grande, se não sabe usar nem pontos, nem vírgulas?
Mas Saramago escreveu livros para se ler maduro. Quando você estiver pronto para entender que as melhores coisas a serem ditas não precisam de travessão.
Saramago escreveu livros para desconstruir a gramática. As histórias não precisam de pontos para terem voz. Ou para ficarem impressas na sua imaginação. Como se você pudesse, de uma página para outra, simplesmente parar de enxergar.
Aprendi a gostar de Saramago na persistência. Depois de algumas cem páginas, ele acaba te enfeitiçando. Você se prende ao seu ritmo. É simples perceber que os pontos são inúteis. A língua pode dizer, por muitas vezes, por si só.
E o que mais precisa ser dito? Quando abri os jornais pela manhã, havia uma frase, com ponto e com vírgulas. Saramago morreu.
Os livros sobrevivem.
Na estante, acho que guardarei todos. Quero dá-los aos meus filhos e netos. Para que eles saibam, o que ele me ensinou. Todo amor nasce de uma persistência. Árdua. Mas sem pontos. Ou vírgulas.

terça-feira, abril 06, 2010

Guia Prático Para Dar um Pé na Bunda

(“Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu. Eu bato o portão sem fazer alarde. Eu levo a carteira de identidade. Na saideira, muita saudade. E a leve impressão de que já vou tarde.” - Chico Buarque – Trocando em miúdos.)

Não. Acima de tudo eu não acredito que existe manual para as coisas que sentimos. Graças a tudo o que há de bom nessa vida, há colorido além da racionalidade. E entre todos os mistérios que a racionalidade não equaciona, está a difícil tarefa de descobrir, quando afinal o amor acaba. Quando a paixão termina. Porque os sentimentos adormecem, como poças d’água que se formam de repente. E quando se viu, ficou tudo ali parado, estagnado, acabou sem se perceber. Amor acaba. Paixão termina. Que seja eterno enquanto dure.
Mas ainda sim, ainda que seja difícil saber o exato e peculiar momento em que tudo se limita à poças d’água, fico me perguntando se tem um jeito decente de expressar essa verdade tão íntima para o outro. Aquele que sobra. Aquele que fica tentando se achar no reflexo da poça. Como diria meu bom e velho pai, não há jeito bom de dar notícia ruim. Mas há jeitos “menos piores”. Há jeitos e jeitos.
E nesse mundo sem jeito, que eu não me canso de experimentar, ando percebendo que a maioria das pessoas não sabe como terminar um relacionamento. A liquidez das relações favorece, no entanto não poupa o curativo. E há jeito de não machucar? Acho que não... Mas há jeitos de se fazer com que a raiva conviva com o ressentimento, ao menos, por menos tempo. E de tudo, restem apenas às lembranças, não apenas a ironia.
Se não quiser terminar, ao menos tenha coragem de não começar. Porque no fundo, tudo mesmo se resume aquela lição besta que a Dona Maroca dizia nos áureos tempos de pré-escola “não faça com o outro o que você não gostaria que fizessem com você”.
Fiz esse manual queimando neurônios em uma madrugada. Bebendo vinho até São Paulo apagar. E escrevi ele, como uma espécie de prece: que menos gente babaca (especialmente do sexo masculino) resista nesse mundo. Terminem o que vocês fazem tanto esforço para comer, que dizer, começar...
Passo n.º 1: Termine. Diga que acabou. Há muito dizer em não dizer nada. Mas é fato que quando se gosta de alguém, a omissão, o talvez, soa com a equivalência de um sim. É necessário coragem, eu sei. Mas não é menos coragem do que você precisa para ficar pelado na frente de alguém e confessar qualquer espécie de tesão. Dizer que acabou é quase tão importante quanto dizer que começou.
Passo n.º 2: Não transe em menos de 48 horas em que você pensou em terminar com alguém. Cortes brutos ao desejo têm efeitos colaterais dolorosos. Evitar o sexo, acredite, ameniza o sentimento de rejeição, pois ele aparece com um disfarce antecipado.
Passo n.º 3: Não compre presentes, especialmente se o término anteceder datas comemorativas como natal, aniversário, páscoa entre outros. Acredite, terminar em datas comemorativas ou logo após elas, depois de se ter dado um presente, é algo que pode surtar alguém. Sem contar que o presente tende a virar um voodu de sensações desagradáveis.
Passo n.º 4: Evite apresentar para amigos ou família se você tem um leve indício de confusão dentro de você. Envolver terceiros é sempre pior.
Passo n.º 5: Vá com calma. Evite ser brusco. Evite ter uma noite de amor e terminar no dia seguinte. Terminar uma relação é uma náusea por si só, não é preciso mais movimento. É mais difícil, mas pode acreditar é mais saudável. Terminar relacionamentos longos costuma ser mais doloroso e ressentido. Terminar relacionamentos curtos costuma ser mais fácil e mais explosivo. Mas em todos os casos, é fundamental ir com calma. Preparar o terreno.
Passo n.º 6: Não faça com o outro o que você não gostaria que fizessem com você.
Passo n.º 7: Você é responsável pelo que cativas. (Será que Exupery terminou algo direito assim como fez com o Pequeno Príncipe?)
Terminar um relacionamento de um jeito, ao menos, honesto, pode não ser nada fácil. Na verdade não evita ressentimentos. Apenas não destrói o respeito. O resto, bem... O resto o tempo cura.
E aos que ficam. Segurando o pé, vendo doer a bunda, sem saber por onde começar. Bem, comecem pela janela: há muita vida lá fora!

domingo, março 28, 2010

Cansaço

(“A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma” – Marina Colassanti – Eu sei, mas não devia”)

Essa aí sou eu. Em dia com o meu atraso. Na companhia da minha solidão. Encobrindo os espaços do meu estômago com angústia. Tentando ver sobre o escuro.
Essa aí sou eu. Cedendo para me poupar. Escapando pela válvula de escape. Amortecendo. Amortizando. Rotineiramente aceitando os limites. Aceitando.
Essa aí sou eu. Engolindo tudo a seco, com um alargador na garganta. Vivendo a indigestão. Brincando com a ironia do mundo. Crucificando a minha própria vontade de ser vítima. Aprendendo a ouvir o meu silêncio.
Essa daí sou eu. Entorpecendo o questionamento. Indo com a maré. Levando com a barriga. Virando a ampulheta. Deixando passar.
Essa aí sou eu. Sentindo a impotência dos sonhos. O apego à cama. A preguiça. O estômago vazio sem fome. A dor sem tempero.
Essa daí sou eu. Sucumbindo. Em cinza. Cansada do cansaço. Com gosto do desgosto. Acostumada.
Essa daí sou eu, acompanhando os minutos da morosidade. Caminhando sem passos.Vendo o dia passar entre um café e outro. Dando peso à leveza. Dando leveza à tristeza.
Essa daí sou eu. Sentada sobre o mesmo círculo que já rodei.
Essa daí sou eu. Sem saber que eu sou.

domingo, janeiro 10, 2010

“Amores Expressos I – fragmentos sobre a esquizofrenia das relações modernas.”

(Tchau. Vai ver se eu estou lá na esquina, devo estar. Já deu minha hora e eu não posso ficar. A lua me chama. A lua me chama. A lua me chama e eu tenho que ir para rua. Lenine – “Hoje eu quero sair só”)

07.12.09. 23h15. “Estava em conflito e fiz prevalecer minha vontade! Ao contrário do que me disse, eu gosto de mensagens no dia seguinte, inclusive pq quero que tenha meu telefone e que saiba que estava um trapo, mas um trapo bem animado hj! Bjs e dorme bem!”

09.12.09. 22h46. “Comprei mais halls de uva... a lembrança que me traz o gosto ameniza minha espera pelo final de semana...quando pretendo te chamar para sair!”
09.12.09. 23h02. “Tá... só não demore muito a aceitar meu convite pq o halls tem açúcar e eu não gostaria de ficar gordo ou diabético.”

09.12.09. 23h10. “Se é só isso mesmo o que espera, me avise que eu como um saco de açúcar e nos vemos hj mesmo... rs...”

10.12.09. 10h17. “Ai, ai... Adoro ser paparicado logo pela manhã... RS... Bjs e um bom dia (com sol) pra vc.”

10.12.09 22h57. “Passei o dia pensando naquele beijo extra doce... Admito que meu dia não passou mais rápido depois dele, mas foi definitivamente mais feliz! Rs...”

11.12.09. 20h33. “Eu que tanto esperei por este bendito fim de semana, agora encontro-me esgotado e preso a esta cadeira infeliz no escritório.O pior é que nem tenho halls de uva para me animar...”

11.12.09. 20h37. “Humpf... Acho que a probabilidade de nos vermos hj é bem remota né?”

11.12.09. 20h39. “Acho que em mais ou menos uma hora..E vc?”

11.12.09. 22h41. “Não tive tanta sorte... Meus problemas se estenderam até há pouco e precisarei de um pouquinho mais do que meia hora. Qual seu endereço?”
13.12.09. 01h57. “Rs... Nunca achei que diria isso, mas minha cama está tão grande hj...”

13.12.09. 23h32. “Voltei mais tarde do que imaginava... Acho que está meio tarde para nos vermos, não? De qquer forma, foi muito bom. Como foi seu dia?”

14.12.09. 01h14. “Cafuné, cafuné, cafuné...rs... E bjs, bjs, bjs.”

14.12.09. 23h15. “ÉÉÉÉÉ...Oi..Hummmm. Tudo bem? Eu quero um cafuné hj...E um pé de cabra para descolar meus ombros de minhas orelhas...”

14.12.09.23h26. “O que vc ta fazendo aí? Vem pra cá e a gente divide um cafuné...”

15.12.09. 02h14. ”Apesar dela me maltratar um montão, eu devia ter ido para a casa dela...Pelo menos eu estaria dormindo abraçadinho agora... É um abraço tão quentinho...”

16.12.09. 00h29. “Não ia mandar msg hj para não me tornar um chato, mas deu uma vontade louca e não pude resistir. Serei breve... Smack!!!”

18.12.09. 03h04. “Promete que vamos nos ver amanhã? Fiquei a semana toda com vontade de dormir abraçado com você... Principalmente pq vc foi a melhor noite de sono que tive nos últimos 15 dias...Como em meu sonho, vc consegue tirar minha cabeça e pensamentos da rotina e transportá-los a um lugar melhor...”

20.12.09. 20h47. “Hummmm.. To meio apertado em meus horários... tem como ser umas nove para não corrermos riscos.”

22.12.09. 01h12. “Cheguei bem sim, obrigado. Não estou muito bem agora que só consegui passagem para as 3 da manhã. Vou trabalhar em frangalhos amanhã. E nem vou ter colo...”

31.12.2009. 22h49. “Com esta mensagem impessoal, porém sincera, quero desejar a todos juntamente com suas famílias e companhias uma belíssima passagem bem como um ótimo ano. Gostaria de escrever para cada um a importância que tiveram não só nesse ano, mas também em todos os futuros, mas, espero ter deixado esta impressão no decorrer de nossa convivência, curta ou longa, profissional ou pessoal. Obrigado a todos pelas ótimas experiências e que no próximo ano sejam ainda melhores. Abraços.”

SILÊNCIO.
CANSAÇO. MUITO CANSAÇO.

“Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita na equação do outro. É isso que faz o amor parecer um capricho do destino – aquele futuro estranho e misterioso, impossível de ser descrito antecipadamente, que deve ser realizado, ou protelado, acelerado ou interrompido. Amar significa abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o medo se funde ao regozijo numa amálgama irreversível. Abrir-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade no ser: aquela liberdade que se incorpora no outro, o companheiro no amor. “A satisfação no amor individual não pode ser atingida... sem a humildade, a coragem, a fé e a disciplina verdadeiras”, afirma Erich Fromm – apenas para acrescentar adiante, com tristeza, que em “uma cultura na qual são raras essas qualidades, atingir a capacidade de amar será sempre, necessariamente, uma rara conquista”.”
(Zygmunt Bauman “Amor Líquido- sobre a fragilidade dos laços humanos”).

domingo, janeiro 03, 2010

Presente de Aniversário

(Ganhei da Silvia. E amei.)

Canção Excêntrica

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em numeros me embaraço e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,

em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço
- do que faço, arrependida.


(Cecília Meirelles, in "Vaga Música", 1942)

sexta-feira, dezembro 25, 2009

Distâncias

(Para o Phil. Pela distância que também nos faz próximos)

O sinal se fecha fazendo com que os carros se amontoem ansiosos ante a faixa de pedestres. Enquanto uma buzina ou outra reclama a pressa, centenas de pessoas invadem as ruas, cheias de sacolas, trombando-se com indiferença e desrespeito. Parecem formigas, levando no lugar das folhas, pacotes.
Apressados esses transeuntes multiplicam-se nas ruas, e, entre uma loja e outra movimentam o frenesi do consumo. O consumo. Parece que tudo é feito para consumir nessa época. Mas eu não compro nenhum sonho de natal. Pelo contrário. Minha paciência anda curta e minha ansiedade eu embrulho para presente. Quero fugir dessa multidão.
Aperto o passo rumo à última estação de metrô da Paulista. Gosto de sentir o cheiro dessa tarde de verão que se põe, juntamente com o sol, atrás dos prédios. São Paulo nessa hora parece até sorrir, ainda que um sorriso tímido que logo se põem, também, atrás dos prédios.
As luzes do dia dão então lugar às pequenas luzes que iluminam a avenida. Pais passeiam com seus filhos diante das alegorias. Eu me irrito com tanta multidão.
Na esperança de que o outro lado da rua esteja mais vazio, espero o sinal abrir, mas não atravesso. Eu simplesmente paro, hipnotizada, diante das luzes que iluminam o Parque Trianon.
Fecho então os olhos, para ter certeza de que guardo na minha memória aquela imagem que me encanta. E escuto então a sua voz familiar.
- Guita, venha ver! Eu consegui acender a árvore do jardim!
Quando corro na agilidade dos meus sete anos para a frente da casa, sorrio diante da surpresa que ficou dias sendo confeccionada no quarto dos fundos. A árvore de luzes, feita com lâmpadas coloridas. Sorriamos satisfeitos, eu e meu avô.
Quando abro os olhos novamente, sinto minhas pálpebras cheias, a ponto de fazer a visão turvar. Uma, duas, três. As lágrimas não demoram a deixar o meu rosto mais fresco do que a noite.
Ainda não atravesso. Quero ficar mais alguns minutos olhando, esperando a mágica passar. Ainda não atravesso, quero vasculhar a outra metade da minha memória, a fim de que outras lembranças boas, fiquem assim, de repente nítidas. Ainda não atravesso, fico do outro lado da rua, de mãos dadas com a saudade.
Mas não consigo. Nenhuma lembrança me presenteia com a mesma nitidez.
Olho então para as luzes e desejo não perder nunca o natal que ele me deixou. Olho para as luzes e agradeço por iluminarem essa distância que nos fez e nos faz sempre, próximos.

segunda-feira, novembro 30, 2009

Aos vinte e sete...

Aos vinte e sete anos eu seguro a vida nos dentes, rangendo-os com força para que meus sonhos não escapem. Não quero deixá-los amadurecendo na lógica mecânica, onde se listam as tarefas, onde se vencem as contas, onde se consomem as horas. Não quero me deixar consumida pelo tempo que não controlo. Apenas vivo de um jeito tão intenso que nem mesmo caibo em mim. Preciso da inconstância do mundo. Me apaixono por ela todos os dias.
Mas aos vinte e sete anos, não me jogo mais em abismos. Chego até a medir as paredes para compreender a profundidade. O resto é prática. Exercício incômodo daquilo que já sei lidar... por isso, admiro mais as surpresas.
Aos vinte e sete me restam as madrugadas para viver o que é incerto. Gosto de me resgatar nesses momentos, em que lamento pelo dia ser terrivelmente finito.
Aos vinte e sete divido meus bons vinhos, com meus bons amigos. E boas conversas com algumas cervejas. Acho que o melhor da vida esta mesmo nesses momentos.
Aos vinte e sete anos eu seguro a vida nos dentes. Acho que é assim que tem que ser. Eu vivo de incertezas certas.

domingo, novembro 22, 2009

Outro lugar

(“Eu, às vezes fico a pensar/Em outra vida ou lugar/ Estou cansado demais/ Eu não tenho tempo de ter/ Nem tempo livre de ser/ De nada ter que fazer/ É quando eu me encontro perdido nas coisas que eu criei/ E eu não sei/ Eu não vejo além da fumaça/ O amor e as coisas livres, coloridas/ Nada poluídas/ Eu acordo pra trabalhar/ Eu durmo pra trabalhar/ Eu corro pra trabalhar” - Capitão da Indústria – Os Paralamas do Sucesso)

Pela janela do avião eu observava as asas rasgarem o céu com violência, chegando quase a tocar os prédios. Os prédios. São tantos que chego a pensar que brotam sem razão, por alguma estranha epidemia. São Paulo é uma cidade doente. Doente de ansiedade. Por isso precisa antecipar o chão. Por isso precisa ter um céu tão apertado.
Mas eu queria espaço. Espaço para voar. Voar em um céu, que fosse ao menos de verdade.
Então, enquanto as asas do avião rasgavam o céu com violência, na mesma violência eu sentia rasgar em mim uma vontade estrangeira de não querer mais voltar. Meus sonhos com a cidade que tanto me deu sonhos, agora se transformavam em ilusão. Estáticos, alguns desses sonhos adormeciam em seu trânsito paralisado. Outros, agora doentes, enlouqueciam na irracionalidade dos meus dias cinzas. São Paulo não me cabia mais, apesar de sua imensidão compactada.
Mas eu amei essa cidade. Um dia cheguei a me casar com ela. E com vontade de resgatar a paixão dos primeiros dias, caminhei pela Avenida Paulista, na ânsia de sentir aquele familiar impulso. Impulso de sonhar com a cidade grande. Impulso de me encantar com as suas possibilidades. Mas não senti nada. Exceto a apatia de quem não distingue mais o luxo do lixo e tudo se mistura. Sem razão. Sem sentido. Caminhei horas sem sentido. Feliz porque a Avenida Paulista é apenas uma reta. Então eu podia seguir em linha reta, quando eu já era apenas curvas. Tortas. Ridiculamente tortas. Estupidamente tortas.
São Paulo é uma cidade estúpida. Como o flanelinha que te cobra 10 reais para “olhar” seu carro. São Paulo é uma cidade grosseira, como a buzina que estoura lancinante pelos míseros 4 segundos que você parou diante de um sinal verde. São Paulo é uma cidade feia como as mulheres esquálidas e plastificadas que transitam pelo Jardins.
São Paulo é uma ilusão e isso tudo não me cabia mais.
E naquela noite eu dormi triste e com as janelas abertas, olhando as luzes insones, esperando encontrar um outro lugar.
Naquela noite eu me senti como quem dorme com um homem que não se ama mais.

segunda-feira, outubro 12, 2009

Sr. Geraldo - O vibrador

Quando ele se aproximou, meu nariz estava fixo em algum capítulo do livro que havia escolhido para as minhas férias. Por isso não lhe dei muita atenção. No entanto, tão logo ele se sentou, retirou dos bolsos um aparelho de MP3, que automaticamente me fez desviar o olhar.
Tratava-se de um simpático senhor, de aproximadamente setenta e poucos anos, com os cabelos bem brancos e um olhar azul bem profundo. Vestia um colete de fotógrafo, uma mochila com uma pequena garrafa de água e ao perceber que meu olhar se desviou de curiosidade, me lançou logo um sorriso largo:
- Você é de São Paulo mesmo?
Era a primeira vez em que viajava completamente sozinha e minha prudência me recomendava não falar com estranhos. Mas se tratando de um velhinho portando um MP3 e me sorrindo de modo tão simpático, não julguei que corria qualquer perigo. Respondi-lhe então fechando o meu livro:
- Nasci no interior, mas estou aqui há oito anos.
A minha travessão não dava início apenas a uma resposta, mas principalmente, começava uma longa conversa que se prolongaria por mais de oito horas, até a chegada ao meu destino.
Sr. Geraldo, como se chamava, era uma espécie de Forrest Gump do ônibus. Um incrível contador de histórias.
Ao longo da viagem, me contou praticamente sua vida inteira que hoje se resumia a uma espécie de revezamento de avós, que realizava junto da esposa, para auxiliar a filha que tinha lhe dado mais um neto.
Professor, advogado, ex-militante do movimento estudantil, machucado com o Brasil atual, idealista além da idade, Sr. Geraldo era uma figura e tanto. Um livro aberto e vivo, que fazia do meu livro escolhido para a viagem, apenas um apoio para as mãos.
- O Senhor parece mesmo gostar de dar aulas.
- Eu? Não. Eu odeio...
- Jura? Mas como assim?
- Sim, odeio... Nas escolas falta estrutura, os alunos são bem mal educados e pouco dedicados, é muito difícil ensinar.
- Então porque você insiste?
- Ahhh... Porque eu sou um vibrador!
Ao me dizer aquela frase, sem dar qualquer conotação pejorativa à palavra “vibrador”, o Senhor Geraldo me provocou uma enorme gargalhada.
- Mas o que é um vibrador? – Eu perguntei.
- Vibrador, Helga, é alguém que vibra com a vida. Eu sou assim... Vibro com a vida.
Senhor Geraldo desceu na rodoviária de Itabirito- Minas Gerais, deixando no meu dicionário um novo significado para a palavra “vibrador”.
Meses depois, quando escutava o discurso do meu chefe fomentando a minha demissão, poucas palavras faziam sentido. Até porque discursos desse tipo se resumem a uma única frase “vou foder sua vida, mas vai ser melhor para você”. Por isso nunca entendo a necessidade de demissões serem tão detalhadas, infestadas de meias-verdades, inundadas de tantas palavras.
Tantas palavras que sequer eu ouvia. A cara do meu chefe impassível era apenas mais um detalhe diante do abismo. Pensava como nunca em Seu Geraldo. Pensava o quão necessário era ter sua nova palavra, naquele momento, no meu curto e limitado dicionário.

quinta-feira, setembro 10, 2009

Profissão não é trabalho

(“Welcome to the cruel world. Hope you find your way. Welcome to the cruel world. Hope you find your way. Oh,oh, it’s a cruel world. Try to enjoy your stay. Yes, it is a cruel world when you’re tryin’ to get by. Oh, oh it’s a cruel world when you’re tryin’, when you’ve seen the look in their eye. Makes life hard living, but I’m so, so scared to die”. - Ben Harper – Welcome to the cruel world)

Profissão é talento, trabalho é esforço. Profissão é não ver o tempo passar, trabalho é cartão de ponto. Profissão é remuneração, trabalho é salário. Profissão é cerveja depois do expediente, trabalho é um baseado. Profissão é aprendiz, trabalho é subordinado. Profissão é cabeça acelerada, trabalho é bunda sentada. Profissão é financiamento, trabalho é conta embaixo da porta. Profissão é vontade, trabalho é pró-atividade. Profissão é costume, trabalho é rotina. Profissão é fé, trabalho é crença. Profissão é calça jeans, trabalho é salto. Profissão é bateria, trabalho é pilha. Profissão é energia, trabalho é força. Profissão é para o resto da vida, trabalho é para aposentar. Profissão é ofício, trabalho é tarefa. Profissão é cansaço, trabalho é estresse. Profissão é desafio, trabalho é dificuldade. Profissão é café para distrair, trabalho é café para acordar. Profissão é dedicação, trabalho é ralação. Profissão é dor, trabalho é sofrimento. Profissão é chega, trabalho é foda-se. Profissão é necessidade de espírito, trabalho é necessidade de sobrevivência.
Necessidade é dizer que nada mais adulto do que ver sua profissão se transformar em trabalho.

sábado, agosto 29, 2009

Curtas

("A vida é doce. Depressa demais." - Lobão)

Eu achei que o amor crescia entre os pequenos espaços cobertos por intimidade.
Não.
O amor só cresce no limbo da paciência.

quinta-feira, julho 30, 2009

Zagueiros

(Mas para ser um bom zagueiro Não pode ser muito sentimental Tem que ser sutil e elegante Ter sangue frio Acreditar em si E ser leal - "Zagueiro" Jorge Ben)

Zagueiro é assim: pura defesa. Segue carregando o time nas costas, jogando na espreita, sempre pensando na melhor forma de driblar o adversário. Joga com a fidelidade de um cão de guarda, fazendo nos bastidores a sua rotina.
Zagueiro é aquele que toca a bola, que constrói a estratégia num olhar ligeiro sobre o campo e depois some, antes que os holofotes se virem para o gol. Zagueiro é aquele que muitas vezes entrega os louros, para que o gol seja marcado. Zagueiro é aquele a quem se culpa quando o time perdeu.
Zagueiro é aquele que ama a bola no pé e não o grito da torcida. Zagueiro é rotina e futebol cru.
Mas há momentos, simples momentos em que o ataque falha. A sede do atacante pelo gol é tanta, que ele mesmo se atropela e cai. Há momentos, geralmente quando o ataque se torna mais relevante do que o time, em que o caminho do sucesso é também o caminho do fracasso.
E nesse momento em que o atacante cai, penalizado pelo juiz da ganância. Nesse momento em que o técnico levanta do banco em desespero. Nesse momento em que a torcida se aquieta. Nesse momento em que o time adversário sorri. É exatamente nesse momento, nesse mágico momento, em que o zagueiro tem duas opções: pode ser fiel a defesa ou arriscar e partir para o gol.
Sua traição pode desfalcar o time. Sua traição pode lhe custar sua posição. Sua traição pode significar o seu fracasso.
Mas com a bola no pé, o atacante caído e o placar zerado, o Zagueiro tem tudo e ao mesmo tempo nada a perder. Por isso ele corre. Por isso ele dribla. Por isso, ele segue para o gol como quem tem sua chance de ouro. Por isso ele conduz a bola com paixão.
E porque a vida é também irônica, nesses momentos de fúria e apreensão, o goleiro adversário se desconcerta e falha. E finalmente a bola se choca com a rede. É gol. De placa.
O Zagueiro então levanta a camisa e abre os braços para a torcida. O atacante, ofendido, se zanga. O técnico o repreende com um sorriso.
E enquanto a torcida vibra, o zagueiro chora a sina de quem depende da sorte para mostrar aquilo que pode ser. E brilha. Mais do que qualquer holofote.
O gol da zaga é sempre de fúria. É sempre de risco. E por isso eternamente dolorido.
Às vezes acho que nasci assim, com a mesma sina de muitas outras pessoas: a sina de ser zagueiro.
E quanto mais a vida me massacrar, pela irresponsabilidade de lutar pelo gol, quando devo ser defesa, mas as minhas pernas se fortalecem.
E sem ter medo, eu vou sempre sair da zaga e correr para o gol.