sexta-feira, junho 10, 2011

Desobediente


Certo dia, quando eu ainda era bem pequena, minha mãe apareceu com um pacote branco enrolado em um laço de fita cor de rosa. Como não era de dar presentes fora de hora, me espantei com aquela atitude da minha mãe. Mas ela me confortou rápido, pedindo para que eu o abrisse. Desembrulhei o pacote sem pensar muito e quando me deparei com um pequeno caderno cor de rosa, com folhas de coraçãozinho, um ursinho na capa e um pequeno cadeado, eu sorri em deslumbramento. Como toda menina, eu era obcecada por caderninhos e canetinhas e adesivinhos. Vivia com os meus aos montes, incansavelmente. Mas o fato daquele pequeno caderno ter um cadeado logo me intrigou e perguntei para a minha mãe porque a necessidade de mantê-lo trancado. Ela então me explicou que se tratava de um diário, onde eu deveria escrever as coisas mais importantes da minha vida e por se tratarem das coisas mais importantes, elas poderiam ser mantidas em segredo. Como eu não sabia aos nove anos de idade quais eram as coisas mais importantes da minha vida, permaneci dias, no silêncio do meu quarto, angustiada, olhando para aquelas folhas de coraçãozinho, que permaneciam em branco. Era muita coisa escrever sobre as coisas mais importantes da minha vida e de fato eu me dei conta, ali, que eu não sabia quais eram.


Meus irmãos logo perceberam que eu andava estranha. Uma certa hora do dia, me fechava no quarto e ficava um bom tempo lá na frente de um caderno cor de rosa curioso. Quando se deram conta de que no pequeno caderno havia um cadeado, perceberam que não se tratava de um caderno comum e me perguntaram o porquê do caderno secreto. Eu, na esperança de que eles me ajudassem a escrever sobre as coisas mais importantes da minha vida, contei que se tratava de um diário. No entanto, ao saber disso eles riram. Para o meu espanto meus irmãos não me ajudaram em nada com a missão de escritora e a partir desse dia montaram um verdadeiro esquema para furtar o meu diário.


Quando percebi as intenções dos meus irmãos, passei a guardar meu diário no lugar mais secreto que conhecia: dentro do vestido da minha boneca favorita. Não demorou uma semana para que eles descobrissem. Quando pegaram meu diário, ainda em branco, pois eu não sabia quais eram as coisas mais importantes da minha vida, eu fiz um escândalo. E minha mãe, com muita justiça os colocou de castigo por dois dias.


Passados os dois dias, tratei de achar um novo esconderijo: debaixo do colchão da cama dos meus pais. Mas dessa vez pareceu até que foi mais fácil. Não demoraram muito a descobrir e, novamente, eu abri o berreiro.


Enquanto eu procurava novos lugares para esconder meu diário, algo muito estranho me aconteceu. Eu me fechei no quarto naquele dia e escrevi, escrevi desesperadamente e por horas ininterruptas, até sentir os dedos das mãos doerem. Eu não me lembro exatamente o que eu escrevia, mas tinha a sensação de que eram palavras sobre as coisas mais importantes da minha vida. E quando coloquei o ponto final na última frase, eu me senti aliviada.


Não entendia porque naquele dia eu havia conseguido colocar tantas coisas no papel. Quase como um vômito ou uma epifania. Mas imaginei que algo tinha a ver com meus irmãos e suas incansáveis perseguições ao meu diário. O fato deles se esforçarem tanto atrás daquele caderninho, por pura desobediência, de certa forma tornava mais tranquila a minha missão de escrever sobre as coisas mais importantes da minha vida. Sem compreender muito, pensava que as coisas mais importantes da minha vida residiam, talvez, na simples desobediência, ainda que essa desobediência fosse a dos meus irmãos. E era exatamente por ela, que eu escrevia.


Comecei então a pensar sobre os lugares mais escusos para esconder meu diário. Para que o esforço fosse maior e consequentemente meus irmãos buscassem mais. Procurassem mais. Sabia que quanto maior fosse a desobediência, mais coisas eu escreveria.


Certo dia então, sem que eu percebesse, eles acharam meu diário. Seguiram escondidos até a sala e iniciaram a leitura. Meu pai abriu então a porta e deu de cara com os dois. Quando percebeu que liam o meu diário, meu pai ficou tão bravo, mas tão bravo que discursou horas sobre a intimidade das pessoas e o direito à privacidade. Dessa vez, meus irmãos choraram mais do que eu. Mas eu assisti com olhos tristes, finalmente, aquela perseguição acabar.


Eram sete horas de uma noite fria. Da janela do décimo quinto andar eu via o trânsito da Avenida Paulista fechar como uma tempestade. As buzinas gritando raivosas. Quanto tempo se perdia ali? A xícara com um resto café esfriava sobre a mesa. Na tela do computador 1479 e-mails não lidos e o telefone, ao lado, tocando estridente. Atendo. A secretaria na linha me pede para passar a ligação de mais um cliente. Mas eu permaneço estática. Outro e-mail pula em minha tela, dessa vez avisando sobre o vencimento do cartão de crédito. Desvio o olhar rápido e permaneço estática, olhando quase sem ar. Na Avenida em meio aos carros dois meninos correm. Correm desafiando a lentidão do trânsito, a solidão estática daquela noite fria. Eu desligo o telefone sem dizer uma palavra. Pego minha bolsa, vou até o elevador e quando saio só me lembro de ir ao café mais próximo. Eu me sento. Abro a bolsa, pego a caneta e começo a escrever. Escrevo como se fazendo o errado, fizesse o mais certo. Escrevo porque as palavras me brotam como o ar que me falta. Escrevo procurando respirar sobriedade além desse ar poluído. Escrevo e os meninos correm, agora, dentro de mim. Escrevo porque ali residem as coisas mais importantes da minha vida. Escrevo por desobediência.

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