A voz veio alta, grave,
retumbando por entre as frestas dos barracos, escapando pelas escadas apertadas
do morro. Rapidamente, o céu foi pretejando de fumaça e o emaranhado de fios e
pipas abandonadas no poste foram se escondendo na névoa e naquele ar pesado. “Fogo! Fogo!” gritava o Seu Zé, dono do
bar mais popular da comunidade. Ele descia as escadas estreitas aos berros e às
vezes, quando não aguentava mais, acabava encostando uma das mãos em qualquer
poste, deixando a cabeça tombar, involuntária, pelos pulmões que pediam arrego.
As tiras da sandália já gasta dançavam na sola, fazendo com que o velho Zé
cambaleasse morro abaixo, como um bêbado louco que incansável insistia “Fogo! Saiam que é fogo!”.
Mas fogo na favela é bala. Toque
de recolher. Porque se tem bala no ar, ninguém sai, apenas se esconde no umbigo
do próprio barraco, até que a tropa da polícia passe e, depois da sua
truculência, deixe um rastro de vermelho para quem fica: chorar. Em silêncio. E
assim, os gritos do Seu Zé, naquele momento onde ainda não se ouvia o fogo
crepitar, faziam apenas o efeito contrário, empurrando os moradores para suas
casas. Seu Zé gritava mais alto, até a voz esganiçar, em desespero. Ele, que
descia o morro só com a roupa do corpo, deixando para trás até a garrafa de
whisky importada vinda de um contrabando. Filha única, de mãe solteira. Como havia
tantas outras ali, que ele não poderia salvar.
Mas Raquel, que também nunca
soube o nome do verdadeiro pai, colocou os olhos para fora da janela do barraco
e quando viu o velho afoito, concluiu na simplicidade dos seus cinco anos, que
aquilo não poderia ser tiro de polícia, nem de traficante. Aquilo era fogo e
criança não podia chegar perto. A mãe já havia saído muito cedo para o serviço
e Raquel foi para o barraco do vizinho, onde ficavam os cinco filhos do seu
Adilson e dona Jucileide.
Dona Jucileide entendeu rápido que
a favela estava em chamas e antes de alinhar os filhos para correr, pegou a televisão
no lombo e saiu gritando “Fogo! Fogo!
Saiam que é fogo!”. Os meninos e Raquel acompanharam a mulher, cada qual com
os olhos assustados, levando nas mãos um brinquedo velho.
Aos poucos, a fumaça foi tomando
corpo deixando o morro mais cego e sem ar. Os moradores começaram a sair de suas
casas com tudo o que cabia nos ombros, nas mãos e nas costas. Alguns se
organizaram, em uma espécie de força tarefa, tentando salvar sofás e
geladeiras, mas o fogo avançava voraz, comendo os parcos bens daqueles que não
tinham quase nada, sem piedade.
Os gritos de “fogo” foram
contaminando todas as vielas do morro. Em meio às labaredas, o povo corria, de
um lado para o outro, tentando salvar o que não tinha, antes mesmo dos
bombeiros e da polícia chegar. É claro que isso ninguém sabe, ninguém viu, mas
no meio do corre corre, o que era de um virou do outro, fosse comida, fosse
eletrodoméstico. Quando a favela ardia, a cobiça gelava, e o que um queria ter,
já era do outro, sem saber.
A notícia do incêndio também se
alastrou pela TV e Mara, que esfregava o chão de uma casa granfina do outro
lado da cidade, ao ouvir o nome da favela, deu um salto em desespero “Raquel,
minha filha!”. Pediu à patroa que pudesse ir ver o que estava acontecendo. A
patroa, sem tirar os olhos do computador, apenas disse aquela moça negra de
vinte e poucos anos: “Vai, mas volta logo, pois ainda tem uma pilha de roupa
para passar...”.
Eram três conduções para chegar
em casa e como não havia tempo, Mara gastou todo o dinheiro que tinha em um
táxi. Entrou no carro chorando e apenas pediu para o taxista correr.
Quando chegou na entrada da
favela, mal dava para passar, tamanha a confusão de polícia, bombeiros e
moradores tentando de alguma maneira combater o fogo. Mara aos prantos, rompeu
o cordão de isolamento formado por aqueles homens fardados e correu com toda a
força que tinha em direção ao seu barraco.
Quando chegou, o barraco de
madeira velha, estava meio tombado, mas longe das chamas. Entrou, vasculhou e
não encontrou Raquel. Saiu novamente para a rua, meio atônita, e quando olhou
para o lado, percebeu que até a velha árvore ainda estava lá. Em seus galhos,
um pássaro ia e voltava, num voo rasante e rápido, como quem quer fugir e não
pode, para longe de toda aquela fumaça. Mara olhou com mais atenção e viu o
ninho com os filhotes piando. A mãe que dava os voos rasantes parecia não saber
o que fazer.
O policial veio acudir, mas ainda
que pudesse ela não voaria para longe. A casa que fica, no coração não queima e
Mara se manteve estática com os joelhos cravados no chão de terra, chorando.
No fundo da viela, dona Jucileide
veio com Raquel no colo e os outro cinco filhos juntos, todos apinhados. Gritou
pelo nome de Mara que correu em direção à filha até abraça-la forte. Seu Zé
vinha logo atrás, pedindo ao policial que lhe deixasse subir para pegar sua
última garrafa de whisky importado.
Quando a polícia e os bombeiros
chegaram na favela em chamas, o caminhão da construtora e os galões de gasolina
vazios já estavam longe dali. Quando a cidade precisava crescer e o progresso
chegar, não tinha outro remédio ou outra receita, ateava-se fogo na floresta. E
os pássaros que se recusavam a deixar o ninho, morriam ali, sem a resistência
necessária para nos lembrar que ainda somos todos bichos.