sábado, agosto 04, 2012

Brinquedo


Não. Eu não sabia. E justamente por não saber, me encolhi no banco do fundo do carro e chorei, quando minha mãe me disse: “Manuela, sua professora veio conversar comigo hoje. O que você tem minha filha? Ela me disse que você não brinca no mais no recreio. Fica somente olhando o pátio das meninas mais velhas...”.

Eu não soube responder à minha mãe o porquê, mas de fato acontecia. Eu não sabia se alguém me via... Quando tocava o sinal do recreio, eu simplesmente corria para um canto, atrás da folhagem, que dava acesso à grade e ao pátio onde ficavam as crianças mais velhas. Meus coleguinhas gostavam mesmo é do insosso tanque de areia. Eu olhava para ele e não conseguia sequer mais ver um castelo. Então eu ia ao meu lugar secreto, às vezes para ficar disputando espaço com as lagartas que devoravam o pobre arbusto, e ficava ali por horas admirando.

A minha obsessão ficava logo à frente do gradil, bem diante dos meus pequenos olhos. Uma fila de pneus coloridos em tons pastéis, enterrados no chão, formando uma fila de arcos, pequenos, médios e grandes. Ali ficavam somente as crianças mais velhas, que até então eram as únicas autorizadas a brincar naquele espaço. O meu objeto de desejo era chamado de pulapula.

 A brincadeira consistia mais ou menos no seguinte: apoiar as palmas sobre os pneus, pegar um impulso, esticar as pernas bem firmes no ar e chegar ao outro lado. Até completar a fila. Era, para mim, uma dança, onde as meninas todas se enfileiravam e pulavam inúmeras vezes a mesma sequencia de pneus, até o sinal tocar.

Eu quase podia ver a cena em câmera lenta. Existia uma menina, chamada Juliana, que era a mais rápida de todas. Antes de pular o primeiro pneu, que era o mais alto, Juliana se concentrava. Respirava fundo. Colocava as duas mãos, perfeitamente paralelas, e então dava um impulso. Suas pernas estendiam no ar com tanta leveza e ao mesmo tempo com tanta firmeza. Suas tranças, as duas, voavam uma para cada lado e ela seguia no mesmo ritmo, até chegar o final da fila para depois bater palmas para si e comemorar. As outras meninas vibravam com a rapidez de Juliana e eu sonhava ser ela, quase todos os dias.

Quase todos os dias, até o dia em que bateu o sinal. Juliana iria saltar pela última vez. Eu queria ver. Do outro lado eu já ensaiava os passos, para fazer igual, o dia em que meu dia chegasse. Eu queria ter a mesma beleza dela, queria fazer exatamente como ela, nos pneus. Então resolvi arriscar.

A professora deu minha falta. Rodou a escola inteira gritando meu nome. Eu conseguia ouvi-la, mas não queria sair dali. Meu esconderijo. Até que ela me achou. Me deu uma enorme bronca por não retornar a sala de aula no horário correto. Eu permaneci em silêncio até chegar na sala. Mas não imaginava que ela iria chamar meus pais.

Eu apenas não sabia. Não sabia por que aquilo acontecia. Mas eu precisava ir até lá, estar até lá, todos os dias, atrás do gradil. Às vezes, quando as meninas não estavam, eu apenas ficava olhando os pneus coloridos, enfileirados, traçando minha estratégia para pular. Todos os cinco. Eu já treinava em meus pneus imaginários. Já pensava o dia em que fossem todos meus. E eu, primeiramente, colocaria as mãos, paralelas e saltaria ao ar, fazendo com que meus cabelos voassem, até estender as pernas, firmes e leves, lá no alto. Quando chegasse ao chão, a areia quase não voaria. Pois seria como pousar, com a mesma leveza em que fazem os pássaros.

Mas a professora percebeu. Minha mãe percebeu. Eu não entendia o que havia de errado. Quando é que a gente começa achar o estranho, normal. Mas era esse o processo. E eu apenas me rendia.

Aos poucos comecei a bolar o plano perfeito. Seria na hora da saída. Quando batia o último sinal, não havia mais pátios separados: crianças mais velhas tinham livre acesso ao pátio das crianças mais novas. Era a hora. Exatamente nessa hora. Eu burlaria os olhares desconfiados das professoras que nos vigiavam no pátio e iria de encontro aos meus pneus.

Um dia deu certo. Porque tinha que dar. Eu já tinha superado a minha fase platônica, já tinha em mim, todos os atributos de sedução. Eu tinha até tranças, como as da Juliana, para pular os pneus como ela. Eu seria, talvez, mais do que ela. Eu teria quase a mesma beleza que até as meninas tinham, quando isso lhes acontecia.

Cheguei ao meu território proibido. Minhas pernas tremiam. Minha respiração ofegante e meu coração disparado. Olhei para os pneus e pensei “são meus” e enrolei as tranças, com um olhar quase doce, para todos eles. Porque aquela certeza era minha e era tão minha que eu preferia que eles não soubessem.  Eu preferia que aqueles pneus todos não soubessem, o quanto eu já havia feito por eles, precisava parecer que era fácil, que era leve, que não doía.

Encaixei as duas mãos, paralelamente, em perfeição. Era a minha chance. Os pneus eram bem maiores do que eu. Bem maiores que as minhas pernas. Eu saltei ao ar. Minhas tranças voaram como tinha de ser. E eu me senti a menina mais bonita do colégio, do mundo, do planeta. Estiquei as pernas no ar, com força e leveza, durou segundos, eu não me importei, cheguei ao chão pela primeira vez depois do primeiro pneu, tão feliz. Eu estava tão feliz. Encaixei minhas mãos e pulei o outro. E o outro. E ...

A professora surgiu gritando, lá do fundo do pátio. Minha mãe vinha logo em seguida. Faltava o último pneu. Eu estava em estado de graça. Achando que já tudo podia. Com a certeza que as ilusões sempre nos proporcionam. Porque a gente acha que é nosso? Porque a gente chama de “meu” e porque constrói todas as certezas no ar, quando na verdade, é a mais pura verdade e a mais pura incerteza da vida? Porque a gente mora nosso corpo no outro? Porque a felicidade não cresce em um terreno baldio? Em um tanque de areia insosso?

A professora estava furiosa. Era o último pneu da fila. Eu encaixei minhas mãos afoitas, dessa vez, eu pulei com tanta força que fui diretamente com o queixo no chão.

A minha mãe gritou esbaforida. Eu fechei os olhos e fiquei algum tempo ainda sobre o chão. Sentindo estilhaçar como vidro fino, a minha mais linda certeza do mundo. Quando levantei minha mãe estava pálida me vendo no chão. A professora não sabia o que dizer. Quando me levantei, senti  o líquido quente escorrer diretamente do meu queixo, pingando sobre a minha camiseta. As tranças já desfeitas. Quando vi que era vermelho, chorei.

Minha mãe me levou direto para o hospital. A professora continuava sem saber o que dizer, numa mistura de raiva e culpa, diante de sua negligência. Foram três pontos. Falsos.

Eu só pensava nos pneus.  Enfileirados. Eu pensava nas minhas tranças voando no ar, no dia em que me senti a menina mais bonita...

Não, eu não sabia. Mas foi ali, naquele dia, a primeira vez em que me apaixonei.