quinta-feira, janeiro 27, 2011

Lembranças coloridas para um silêncio em preto e branco


Ela rasga o saquinho de chá com destreza, despejando todo o seu conteúdo na xícara ainda fumegante. O perfume das ervas me invade com a mesma violência do silêncio que se instala sobre o absurdo. Permaneço por alguns longos segundos atônita, enquanto ela gira a colher com naturalidade. Eu giro ao mesmo tempo em mim, nessa certeza de vê-la indo. A todo tempo ela está indo. Se esgotando.
“Vó, esse não é o adoçante”.
Ela olha a xícara e demora algum tempo até finalmente perceber. “É mesmo!” – ela me lança um sorriso sem graça. “Essa minha cabeça. Não está ajudando muito.” Eu digo a ela que tudo bem. Eu digo a ela com a mesma tranqüilidade com que ela me dizia quando eu tinha medo de escuro “Tudo bem”.
“Vem, deixa que eu recolho. Vamos dar um jeito nisso, ok? Você ainda quer o chá de laranja?”. Agora o silêncio parece que também toma conta dela. Até que pouco encorajada, como quem acorda de um sono distante, ela me responde que sim.
Eu mergulho o saquinho de chá em uma nova xícara e despejo a água. Antes que minha tristeza tome conta dela, eu reitero, “Tudo bem Vó. Não tem problema.”
Levanto e vou até a cozinha, dessa vez para buscar a faca do pão que faltou. Quando me sento novamente ela faz sua velha e sábia pergunta “E o namorado?”. Dessa vez eu sorrio sem jeito. “Ahhh Vó... Está muito difícil arrumar um homem nos dias de hoje” e dou uma gargalhada, dessas feitas para desconversar.
“Eu tenho rezado para você. Rezo para todos vocês. Todos os dias, eu começo na sua mãe e depois vem vocês, e, depois vem sua tia e seus primos e depois seu tio e a família dele”. Os nomes dessa lista são necessariamente trocados. E eu a corrijo sutilmente, enquanto ela me diz “É? Não, esse é aquele”.
Eu digo a ela que tudo bem. No fundo, quem nunca teve medo de escuro?
“Que bom que você reza por mim. Vó pede pro santo um bonitão, moreno, forte, barriga tanquinho, rico e, por favor, que não seja gay”. Caímos as duas na risada.
“É difícil arrumar um homem” ela me diz.
“Vó me conta aquela história de como você conheceu o Vô?”. Eu simplesmente adoro essa história e acho que já a ouvi milhões de vezes. Fico extremamente feliz por ela esquecer que me conta, pois sua alegria é como se nunca tivesse me contado. A hora que mais gosto, é quando ela olha de canto e cora, e depois, logo em seguida, abre um sorriso largo, como se fosse hoje. Como se fosse ontem esse tempo curto das lembranças.
“Você sabe, naquele tempo não tinha shopping e internet. As pessoas se conheciam na praça. No domingo, depois da missa. Acabava a missa e todo mundo ia para a praça. Era engraçado, as mulheres rodavam para um lado e os homens para o outro. E assim que a gente flertava. Um dia eu percebi que ele me olhava. Mas ele era tão garboso (vou ao delírio quando ela usa essa palavra) que eu demorei a entender que era comigo. Ele tinha uns olhos azuis. Parecia um artista de cinema...”
O passado é um lugar nada confuso agora. Até mesmo as palavras se encaixam nas frases, sem lhe dar nenhum trabalho. Eu fico com os ouvidos bem abertos, deixando aquela história tomar conta da sala inteira.
Lembro-me de quando era pequena e enquanto ela fritava o bife, eu permanecia debruçada sobre a mesa com a minha caixa de lápis de cor, entretida com algum desenho. A gordura estalava e ela me perguntava o que tanto eu desenhava. Sem perceber, eu lhe contava histórias fabulosas.
Enquanto minha Vó descreve todos os seus suspiros e os olhos do meu avô, seguro minha caixa de lápis de cor com toda força. Eu sigo pintando, com todas as cores que posso, nossas lembranças coloridas. Até que o silêncio nos cubra de preto e branco.
Enquanto ela se vai, eu fico, eu insisto, em todos os momentos.
Não tem problema ter medo de escuro. Tudo bem.

sábado, janeiro 15, 2011

Cinderhelga

(http://www.youtube.com/watch?v=SUP2nEM6yYQ)


"Era uma vez, uma mulher que via um futuro grandioso para cada homem que a tocava. Um dia, ela se tocou."

(Alice Ruiz)