domingo, dezembro 26, 2010

A busca

(“Quem sou eu, sonhando assim e pensando assim. Que solidão dentro de mim. Eu sigo assim sonhando pra viver. Eu continuo a sonhar. Com os pés no chão, não tenho onde pisar” – Nem todas as cores. Miro Dottori )

Ontem, quando dei a última volta na chave para trancar a porta de casa, senti um arrepio estranho percorrer a espinha. Resisti por alguns minutos, achando que se tratava de alguma neurose instantânea. Tenho dessas de vez em quando, portanto simplesmente me ignorei e chamei o elevador. Mas o incômodo persistiu: era como se algo beliscasse a minha memória. Eu não sabia exatamente o que era. Então vasculhei os bolsos da bolsa e depois revistei os da calça. Mas aparentemente estava tudo no lugar: documentos, chaves, carteira, celular, agenda, filtro solar, remédios para dor de cabeça. Meu arsenal anti-tudo que carrego comigo diariamente.
A luz do elevador iluminou o hall e o rangido habitual da porta me convidou a entrar. Não tive coragem. Sabia que estava esquecendo algo. Algo que me parecia muito necessário.
Dei alguns passos para trás. Retrocedi. Eu estava atrasada. Mas e daí? Eu sempre estou não é mesmo? Voltei à porta e rapidamente entrei em casa. Voei direto à gaveta de calcinhas. Escondo de tudo ali. Me escondo até de mim mesma. Revirei. Procurei. E nada ...
Fui então ao canto do armário, onde fica amontoado o ferro e as roupas limpas. Olhei, pesquisei. Mas estava tudo no mesmo lugar. Minha bagunça organizada. Tateei a cama. Desarrumei ainda mais os lençóis. Joguei os travesseiros ao chão. Tudo ali. No mesmo lugar. Corri para a última gaveta da cozinha. A espátula. A toalha tão pouco usada. Uma caixa de fósforos. Tudo igual. A única novidade era essa sensação: de estar esquecendo alguma coisa. De ter perdido algo.
Fui à estante de livros. Com os dedos percorri os títulos, até que involuntariamente, parei. “Felicidade” era o título onde meu dedo restava imóvel. E sobre ele, eu já não tinha nenhuma vontade. Onde é que eu havia esquecido mesmo?
Procurei a felicidade então nas gavetas. As tantas outras por onde não havia estado. E depois nos armários. E até no pó, que eu não imaginava que era tanto, embaixo da cama. Procurei felicidade na euforia, esta que vem de qualquer coisa, de qualquer momento. E por um segundo, achei que ela estava ali, palpável, em algum riso. Procurei felicidade em lugares. Em empregos perfeitos. Em chefes perfeitos. Em homens perfeitos. Na família perfeita. Que eu nunca encontrei. E procurei felicidade em amores. Inclusive, aqueles que eu imaginei. Procurei felicidade na serotonina do meu chocolate. Nas minhas incontáveis doses de cafeína. Na endorfina conquistada depois de corridos os meus cinco quilômetros muito bem suados. Procurei felicidade nas rodas da minha bicicleta. No divã dos meus terapeutas. Nos gostos que o mundo pode ter. Nos cheiros. Procurei felicidade na saudade. No fundo da bolsa. No fundo do bolso. No fundo do túnel. No escuro.
Procurei felicidade em um corpo perfeito. Em cílios curvados e uma pele impecavelmente sem espinhas e sardas. Procurei felicidade além dos meus poucos seios. Além dos meus fartos quadris. Além do que eu tenho de feio e não resiste a nenhum parâmetro de beleza. Procurei felicidade no que evito.
Procurei felicidade em receitas, em dietas, em mandingas.
Procurei felicidade entre moedas. Na multiplicação das invariáveis da economia. Na poupança. No décimo terceiro. E em liquidações.
E procurei felicidade pelos cantos. Até mesmo aquele que você me deu, para eu ficar te esperando. Procurei felicidade nas fotografias. Nos amigos que se foram. No pôr do sol. Incansavelmente eu procurei felicidade nos teus olhos. Na tua música.
E procurei felicidade nas asas do avião que me levava distante para qualquer lugar. Procurei. Farejei. Mapeei. Desvendei. Eu procurei felicidade no prazer. No silêncio. No barulho. No tango. No samba. No jazz. Na rumba. No pop.
Eu procurei felicidade num orgasmo. Numa catarse. E numa epifania.
Eu procurei. E revirei. E procurei mais.
Eu procurei felicidade nas garantias. Na imobilidade. Nas certezas. Até as que eu construí, com fragilidade de verdades imperfeitas. E procurei felicidade sobre o que era imóvel, pouco dinâmico e instável.
Eu procurei felicidade no mapa. No Google. Na lista telefônica. E na coleção de Barsa.
Eu procurei felicidade na dor. E depois na farmácia. Eu procurei felicidade nas ruas, nas esquinas, nas bibliotecas. E procurei até em
alguns livros de direito.
Eu procurei felicidade na bagunça e também na organização. Mas eu não sou nada disso.
Eu procurei felicidade. Com todas as minhas forças.
E me cansei.
Deixei a casa bagunçada. Travei novamente a porta. A luz do elevador iluminou o hall. Como sempre o seu rangido habitual me convidou a entrar. Abri a porta. Entrei. Desci. Tirei o tênis. Depois a meia. E saí, caminhando descalça pelo mundo.
Quero a felicidade que se pisa com os pés.

domingo, dezembro 12, 2010

Meu heterônimo

"Há muito tempo que não escrevo. Tem passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me destingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num reverbéro alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave ao fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste e ter a consicência de que, com a minha tristeza, se cruzou agora - visto com o ouvido - o som súbito de eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu."

(Fernando Pessoa, O livro do desassossego, 139)