sexta-feira, junho 18, 2010

"Saramargo"

Desde a primeira vez que abri um livro seu, li tudo com uma certa birra. Na minha cabeça eu permanecia segurando a caneta vermelha da tia Emília, minha professora da segunda série, que fez dos meus textos um borrão, por conta da falta de vírgulas.
E ler aquele homem, que escrevia sem pontos, travessões ou vírgulas, era um desafio à minha infância de dicionário Aurélio. Era uma ofensa ao meu português entalhado em vermelho. Lembrava-me das primeiras lições, logo que aprendi a ler, “a vírgula é o momento em que o texto respira”. Saramago sempre me tirou o fôlego.
E por me deixar assim sem respirar durante frases e frases, apelidei-o de “Saramargo”, especialmente após sua literatura tornar-se obrigatória para o vestibular.
Era estranho. Havia um exercício imenso em entrar naquele texto. Havia uma concentração enorme para atravessar aquelas palavras, entender suas frases, enfim, permanecer sobre as suas páginas.
Quando ganhou o prêmio Nobel, olhei o com mais desdém: como pode ser tão grande, se não sabe usar nem pontos, nem vírgulas?
Mas Saramago escreveu livros para se ler maduro. Quando você estiver pronto para entender que as melhores coisas a serem ditas não precisam de travessão.
Saramago escreveu livros para desconstruir a gramática. As histórias não precisam de pontos para terem voz. Ou para ficarem impressas na sua imaginação. Como se você pudesse, de uma página para outra, simplesmente parar de enxergar.
Aprendi a gostar de Saramago na persistência. Depois de algumas cem páginas, ele acaba te enfeitiçando. Você se prende ao seu ritmo. É simples perceber que os pontos são inúteis. A língua pode dizer, por muitas vezes, por si só.
E o que mais precisa ser dito? Quando abri os jornais pela manhã, havia uma frase, com ponto e com vírgulas. Saramago morreu.
Os livros sobrevivem.
Na estante, acho que guardarei todos. Quero dá-los aos meus filhos e netos. Para que eles saibam, o que ele me ensinou. Todo amor nasce de uma persistência. Árdua. Mas sem pontos. Ou vírgulas.